Pai aos 50
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O meu filho tem medo de animais como tem medo de monstros. Quando lhe ligamos o “Monstros e C.ª”, segundo este novo modelo em que ele próprio se adianta:
— É só uma vez!
Ou:
— Só um bocadinho, combinado?
A primeira coisa que faz é tentar perceber qual de nós conseguirá recrutar para se assustar com ele durante a primeira cena. Então, fica ali a fazer carinhas e sussurros:
— Shiu... Shiiiiiu...
Até que o candidato a monstro tenta assustar a criança, nós gritamos a plenos pulmões – “de medo”, evidentemente – e ele ali a olhar para nós, fingindo-se assustado, mas no fundo divertidíssimo, porque não tem qualquer medo dos monstros, apenas sentido de humor e ternura.
A mesma coisa com os animais. Ontem saímos de casa de cachecol, para irmos festejar mais uma vitória do Sporting à Praça Velha, mas antes tivemos de passar no Monte Brasil, onde agora há um veado que nos vê e vem buscar mimos.
Parece que já nos conhece, e se calhar até conhece, tantas foram as vezes que o visitámos desde que voltámos de Lisboa e precisámos de inventar um jardim zoológico na ilha. E portanto ali ficámos, com o Artur a dar-lhe festas nos corninhos, incipientes ainda, na testa, nas orelhas.
Como dá festas, ou pelo menos quer dar festas, em todos os cães com que se cruza. E gatos. E galinhas. E vacas. E cavalos. Até em leopardos, se o tivéssemos deixado fazê-lo naquela visita ao Zoo de que continua a falar todos os dias – e rinocerontes, e hipopótamos, e elefantes, e cobras.
Mesmo uma horripilante barata com que nos cruzámos aqui à frente na estrada, há dias, ele quis proteger. Medo, nenhum. Em nenhuma circunstância até hoje. Sempre, antes, curiosidade. Depois, carinho.
E eu pergunto-me duas coisas. A primeira é de onde vem este tão grande amor que as crianças têm aos animais. É o quê, a inocência? Mas a inocência deles ou a inocência delas? Ou ambas? Existe uma linguagem entre inocências, um código só delas? E é do fim delas, das inocências, que vem a resultar o afastamento dos adolescentes (ou dos adultos) em relação aos animais?
E a segunda: em que momento uma criança percebe que a carne que tem no seu prato provém daqueles animais, ou de animais com naturezas (até existências) não muito distintas das daqueles? Ou sabê-lo-á sempre, de um modo ou de outro? E, nesse caso, como se protege? Com a velha suspensão da incredulidade de que falava Coleridge? Desenvolvendo uma nova indiferença, uma nova apatia? Por razões de simples sobrevivência?
É fascinante, esse instante a partir do qual uma pessoa consegue ou deixa de conseguir comer os seus animais de estimação – os seus amigos. Ao fim de dois anos e meio, ainda não consegui intuir, ou sequer imaginar, um momento mais fascinante do que esse, e o facto de ser carnívoro talvez só o acentue.