Cidadania Impura
Corpo do artigo
O senhor Daniel ficou muito branquinho e sempre foi bastante alto. Da sua varanda vê o dia, espreita os cães que passeiam no jardim, acena a quem passa. Por identidade, o senhor Daniel sorri. Julgo que padece de uma doença há um mínimo de vinte anos, mas em cima do corpo, por mais que adoecer seja difícil, o homem alto tem seu sorriso. Eu não sei se encontro sorrisos mais limpos, sinceros, do que o dele. Da sua varanda, quando nos cumprimenta cá para baixo, o senhor Daniel de sorriso franco é uma luminária, um feixe de luz que nem o sol intenso disfarça.
A senhora Da Hora faz bolos e sabe escolher frutas ou encontrar mil conchas de beijinhos na areia da praia. Anda de volta do marido como uma alegria igualmente inesgotável e todos pensamos que o prédio fica mais bonito com eles. Da varanda, o Apolo, o grande cão também branco, chama por nós, sempre com ciúmes dos cães que já estão a passear. O Apolo era tão pequenino e alegre que parecia ter vocação genuína para ser criança a vida toda. Mas cresceu, ficou enorme, sem perder, no entanto, uma meninice de espírito que lhe traz doçura à tremenda força.
Tive medo que o Apolo, só de ser moço imaturo e muito forte, pudesse andar por casa em pressas e derrubar o senhor Daniel. Mas o cão, tão branco e grande quanto o dono, sabe que em seu redor tudo precisa de ser cuidado. Gordo e de boca imensa, em casa anda como se fosse um cisne. Tem mais gentileza do que a maioria das pessoas e eu acredito que preste atenção aos noticiários na televisão e se compadeça com a miséria que vai pelo mundo fora.
O senhor Daniel, contaram-me, há décadas salvou muita gente a dirigir um autocarro no Porto. A desgraça veio tentar mas ele conseguiu salvar as pessoas e pode ter sido um milagre. Eu não pergunto nada à vizinhança. Tenho a impressão de que não me compete atazanar ninguém com a curiosidade. Mas os tantos anos de termos esta casa na família também faz de muitos vizinhos uma certa família. E eu fico feliz por saber que alguns heróis assomam às nossas varandas e nos abençoam com a capacidade de resistir, numa constante decisão pela vida e pela graça. É como vejo o senhor Daniel.
Ainda hoje me acenou. O Apolo barafustando porque eu e o Crisóstomo já íamos ao passeio. A vida é boa quando nossos sinais de companhia seguem. Parece que vamos de barriga cheia de bolos frescos e saborosos. Mais mil beijinhos apanhados entre uns e outros.