Crítica de música
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Após um primeiro longa-duração, “All my people”, lançado em 2019, a irlandesa Maria Somerville regressou a casa, na região de Connemara, costa oeste da ilha, desenhada pelas ondas e pelo vento. Abundância de Natureza pouco importunada, lagos e montanha. Um cenário que lhe terá garantido paz interior e que, após longa gestação, vê nascer “Luster”, álbum inaugural para a editora 4AD.
Há fantasmas de coros e guitarras, às vezes indistinguíveis, espessando o fio do horizonte na maioria das 12 faixas de “Luster”. Ouvem-se ecos da delicadeza dos Cocteau Twins, ouve-se uma fragilidade de porcelana. Poder-se-á chamar a isto dream pop, ou shoegaze, mas ambos são insuficientes para descrever as camadas, contraditórias e surpreendentes, das canções. A lentidão geral traz sensualidade ao som, auxiliada por uma voz ora sussurrada, ora projetada a meia distância, evocando neste segundo caso o torpor de Lana Del Rey.
Estamos num doce antro indie, anglocêntrico, ali entre 1985 e 1990. O registo é caseiro, Connemara, com uns salpicos de Dublin. Gravações de campo realizadas por Somerville passam por alguns temas, as ondas e o vento. Nos acordes esqueléticos retirados das guitarras acham-se afinidades com The Cure e The xx – no segundo caso, mais nitidamente em “Trip”. The Cure, então. “Garden” traz algum do ambiente instrumental pós-apocalíptico que Robert Smith traçou em “Desintegration”. É um rescaldo da tempestade que também marca o estado de suspensão em que “Halo” existe: passam pela cabeça os My Bloody Valentine, Enya, Julee Cruise, numa canção feita de esboços, sem início nem término. “Up” também anda por aqui, embora de uma forma mais tangível e dramática. O díptico “Spring”/ “Stonefly” é a encarnação silvestre, etérea e cicatrizada, ainda algo combalida, da primavera.
Neste álbum, Maria Somerville é uma arquiteta com visão clara do que pretende que a sua arte seja: apaixonada, rigorosa. Turva. Ao sabor do tempo e da paisagem, ao sabor dos elementos.