Pai aos 50
Corpo do artigo
Às vezes lembro-me daquele dia. Não, lembro-me imenso daquele dia. Às vezes lembro-me daqueles dez minutos. E, pensando bem, devia ser uma memória terrível, esse instante. Mas a verdade é que continuo a olhar para ele com simples perplexidade, talvez até humor – e depois volta a passar-se bastante tempo até me lembrar de novo.
Estava uma bonita manhã de Outono, uma daquelas límpidas manhãs de Outono com que a meteorologia dos Açores rompe com os próprios cânones, e irmos ao hospital era uma formalidade, vista a inexistência de sinais de parto. Mas tínhamos entrado na 41.ª semana, a médica estava de serviço e, já agora, fazíamos uma revisão. Até que ela, sorrindo:
— Não sentes as contracções, a sério? Estás com três dedos de dilatação, Marta.
Fui ao carro buscar a mala, preparada havia semanas, e enquanto voltava pensava no passado. Sim, eu vinha de 20 anos de abortos, casamentos, fertilizações, angústias. Mas, sobretudo, nós vínhamos de um aborto, a Marta e eu. Sentenciado num hospital de Lisboa, em plena pandemia, interrompido um jantar mexicano por via de uma dorzinha que afinal já nem podia ser de vida.
Pois, desta vez, conseguíramos.
E não é que não tivéssemos tido medo, de início. É que, quase sem que o percebêssemos, o medo fora dando lugar à alegria, a aflição ao entusiasmo, a ansiedade à expectativa. Chegávamos ali quase sem inquietações, confiantes inclusive de que os planos que fizéramos bateriam certo. O resto era protocolo.
Portanto, quando a médica reajustou a posição da Marta durante o CTG, e depois a reajustou de novo, fechando o cenho, e a seguir trocou um olhar com a enfermeira mais velha, e começou a ficar com um ar lívido, e me mandou sair da sala, sem me olhar nos olhos, eu nem me alarmei. Ali estava a médica que se ocupava do parto do Artur, incapaz de esconder o terror com a ideia de que o nosso bebé já não estivesse vivo, comunicando-o com o rosto – e eu impávido.
Quase impávido. Rindo, praticamente:
— Oh, mas eu ia cair numa dessas, agora?
Seria um absurdo. Uma aberração estatística, depois de tudo o que acontecera. Ou então Deus existia mesmo, o Deus castigador e cruel da Bíblia, e em todo o caso não haveria nada a fazer: a vida era só estúpida, e ainda bem que eu tinha passado metade dela a fazer asneira.
É claro: fora uma enfermeira a desligar a máquina, para irritação e alívio da médica. E a seguir ainda passámos uma semana a caminho da neonatologia, por via de uma tiragem que indiciava infecção. Em casa, os dois sozinhos, sem ninguém a quem fazer perguntas, com ele tão pequenino dentro da incubadora, chegámos a ter medo – tudo bem.
Mas, naquele momento, não. Eu não. Eu tinha acabado de descobrir a matemática, e agora estava determinado a crer nela com todo o meu coração.
*O autor escreve de acordo com a anterior ortografia