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As primeiras birras são assustadoras porque nos perguntamos se eles vão ser violentos. Depois tornam-se uma rotina e as coisas ficam definitivamente pior, porque já lemos sobre o assunto, falámos com outros pais, trocámos mensagens com a pediatra e ouvimos que é normalíssimo, que faz parte do processo, mas agora algo dentro de nós nos diz que eles podem mesmo acabar brutais.
Lembramo-nos dos nossos pais, tios, avós, tios-avós que eram violentos, irascíveis ou apenas indecifráveis. A dada altura já vemos igual impiedade nisso tudo, e de repente misturam-se até as vezes que nós próprios perdemos a cabeça, ou nos enervámos – talvez brandamente, mas sabe-se lá até onde podia ter ido. E aquela vez que eu, irritado, empurrei a tábua do pão sobre a bancada, partindo uma chávena? E aqueloutra, há mais anos ainda, que um senhor se atravessou na auto-estrada, quem sai para Setúbal, e eu saí do carro desvairado, correndo para ele até detectar uma criança assustada no banco de trás e ficar sem saber se devia zangar-me ainda mais ou abraçar o homem.
Não sei: venho de uma linhagem de gente colérica e rubicunda, de um lado, e de uma genealogia ainda mais inquietante do outro, com dois homicidas e pelo menos um cultor apaixonado – muito apaixonado – da guerra. Um patriarca da minha família abateu um dia vários gatos a tiro de caçadeira, em frente a crianças. Outro decidiu poupar-se aos trabalhos que o cão do clã implicava metendo uma bala de pistola no crânio do animal. Durante anos, riu-se da sua própria atrapalhação perante as lambidelas felizes do bicho – até que se esqueceu do nome dele.
Eram tempos muito rudes, lugares muito rudes (no continente como nas ilhas), pessoas muito rudes. Éramos pessoas rudes, que se riam de perus embriagados, de toiros ajoelhados no alcatrão, de caniches deixados sozinhos no limite dos logradouros, amarrados a um bidão de metal, a dezenas de metros do humano mais próximo. É daí que eu venho.
Que nós vimos, eu e o Artur: do lugar onde o pranto daqueles caniches, latindo contra o infortúnio e a solidão, se podia esquecer. E tudo isso me volta à cabeça, com um calafrio, quando o Artur faz uma birra colossal porque não quer o pijama da tartaruga ou se rebola possesso no chão, empurrando-nos um a um, porque quer ir “brincar para o carro do vovô” antes, e não depois, do almoço. Mas a seguir sentamo-nos a ver os Monstros, ou vimos de jogar golfe no Relvão, ou eu ponho-me a secá-lo de um banho a que resistiu mas que afinal adorou, e ele dá-me um abraço. Ou um beijo muito aspirado. Ou faz uma festinha súbita, preocupada, aflita, à mãe:
— A mamã está triste?
E eu sei ele que não vai ser como eles. Que ele não é como eles. Que ele não é como nós. Chamava-se Fiel, filho. Nunca te esqueças do nome daquele cão.