"Pai aos 50" é um espaço de opinião semanal assinado pelo escritor Joel Neto.
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Sem moralismos: não é verdade que as crianças venham destinadas a viciar-se na TV, nos telemóveis, nos ecrãs em geral. Não o digo por reprovar o contacto com esses objectos. Aquilo de que tento dissuadir-me é da tentação de, ao fim de um dia cansativo, despejar o Artur diante de um televisor ou de um telemóvel. De resto, não só autorizo que veja televisão (eu como a Marta), como gosto que veja alguma televisão (se calhar até mais eu do que a Marta), desde logo para que o edifício das suas memórias de infância possa ter pontos de contacto com os de outras pessoas da sua idade. Todo o cuidado com a solidão é pouco. Simplesmente, há que dosear. E, mais importante ainda (eis o que pretendo dizer), ele quer dosear.
Não tenham ilusões: nenhuma criança passa horas frente a um televisor porque queira passar horas frente ao televisor. As crianças gostam do televisor da mesma maneira que um adulto gosta de um par de óculos ou de uma dentadura postiça: sendo preciso, resolvem, mas muito melhor é ver com os nossos olhinhos e comer com os nossos dentinhos. O que as crianças desejam, realmente, é interagir connosco, aprender connosco, divertir-se connosco - passar tempo connosco. Tenho essa experiência, reiteradíssima. Ainda há dias, num sábado em que estávamos os dois sozinhos, o Artur interrompeu a meio um programa qualquer, creio que um episódio da Patrulha Pata, para proclamar:
- Agora não vamos ver mais televisão.
Agarrou-me pela mão e levou-me para o cantinho dos brinquedos. E, não há duas semanas, no supermercado - e mesmo depois de eu já o ter deixado tirar fotografias com o telefone, eliminando parte dessa proibição -, viu-me a mexer no iPhone, quiçá a propósito de algum pendente da livraria, e tirou-mo das mãos:
- Ai, ai, ai, ai! Agora não há telemóvel, pai!
Ao que se pôs a mostrar-me o truque que tinha inventado com bolas de pingue-pongue, e a que eu não estava a dar atenção.
Não: as crianças de hoje não são assim tão diferentes das de outrora. Nós também nos teríamos dedicado a aumentar e diminuir fotografias num pequeno aparelho digital, com os dedos em pinça, se este tivesse bastante luz e, já agora, houvéssemos visto os nossos pais fazê-lo. E elas, se dispusessem da oportunidade de ir para a oficina de carpintaria com os avós, enquanto os outros adultos ficavam na cozinha a ver telenovelas, programas de variedades, mesmo desenhos animados, era precisamente isso que fariam.
Como nós fizemos, ou pelo menos fizeram aqueles que tiveram sorte. Como eu fiz. Que saudades da oficina de carpintaria do meu avô. Quem me dera poder dizer que tudo o que aprendi sobre a vida e o mundo, o aprendi na oficina de carpintaria do meu avô. Infelizmente, Saramago disse-o primeiro.

