Crítica de música
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Depois de alguns anos investidos a esmiuçar a sua discografia em prol de várias reedições, Mariah Carey lança o primeiro disco de originais desde 2018. Talvez por isso, e porque a meia-idade se presta a balanços, "Here for it all" (edição Mariah/Gamma) é guiado por duas correntes que se entrelaçam: uma corrente retrospetiva, quase enciclopédica, em que múltiplos estímulos sonoros que marcaram o percurso da cantora e compositora americana são chamados a prestar prova de vida; e uma corrente alerta, ligada ao presente do r&b, que se manifesta sobretudo através do músculo digital da produção e de algumas das vozes convidadas - é seguir para "Sugar sweet", com Shenseea e Kehlani, aludindo ao afrobeat.
"Here for it all" (um título que já remete para uma ideia de completude) consegue bater a várias portas em 40 minutos e 11 canções. É tempo bem aproveitado, tempo inspirado, por vezes de formas familiares mas pouco comuns na história de Mariah. Exemplo: o modo como a sua voz se alinha com a de Anderson .Paak para "Play this song", um naco de soul dispendiosa que remete para o som de Filadélfia do início dos anos 1970, ali à beira do disco. Anderson também adoça com classicismo a romântica "In your feelings", e ajuda no funk elástico de "I won"t allow it".
Para lá disso, o álbum cruza r&b minimal com hip-hop da fronteira entre os 80 e 90 (em "Type dangerous"), não esquece as baladas em crescendo alimentadas a violinos ("Nothing is impossible") e, num registo próximo, empresta alguma solenidade gospel a uma revisão justa de "My love", de Paul McCartney com os Wings. Por falar em gospel: a fechar, o ouvinte é abençoado por uma sessão de funk, corpo e alma em maravilhoso abandono, em "Jesus I do" (com The Clark Sisters); e pelo tema-título, primeiro secular, depois sagrado, primeiro uma ascensão com piano e harmonias vocais, depois um desabrochar em soul com groove acetinado.
Ao longo destas viagens, Mariah Carey não foge às convenções. Não tem de fugir.