A vida como ela é
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Em 2023, a Organização Mundial de Saúde “acordou” para outra pandemia que também mata a população mundial, a solidão. Como um polvo de infinitos tentáculos, a solidão ataca todas as faixas etárias em todos os lugares do Mundo. Não é preciso trabalhar numa plataforma de petróleo instalada em alto-mar nem ser habitante das ilhas do Arquipélago Tristão da Cunha, consideradas o ponto mais remoto do Planeta, para sofrer de solidão. Calcula-se que um em quatros idosos vive totalmente só. Nos últimos três anos morreram em Portugal mais de 750 idosos em casa. O escritor americano Michael Cunningham escreveu num dos seus romances que o Mundo começa a encolher depois dos 40 anos. Oxalá assim fosse. Segundo a OMS, pelo menos 15% dos jovens a nível mundial sentem-se sós, números que a própria organização admite estarem subestimados. Entre estes, é no continente africano e a leste do Mediterrâneo que a percentagem é mais elevada, o que levou a necessidade de redefinir a narrativa em torno da solidão, especialmente para as populações vulneráveis e excluídas.
A solidão é um flagelo, um tema de saúde física e mental. Quem sofre de solidão está mais exposto à demência em 50% e às doenças cardiovasculares em 30%. A solidão afeta o sistema imunitário, os seus efeitos equivalem a fumar 15 cigarros por dia. Mas deixemos números e percentagens de lado e olhemos para a nosso lar, a nossa família, os nossos vizinhos, o nosso prédio, o nosso bairro. O que é que cada um de nós está disposto a fazer por si mesmo e pelo próximo para ajudar a combater este monstro que se tornou aparentemente invencível, consequência da invasão digital em que vivemos e dos terríveis hábitos que deixámos que este “admirável” mundo novo nos impusesse? Antes de apontarmos o dedo a culpar as instituições e os governos como bodes expiatórios de tudo, como vem sendo cada vez mais a narrativa de alguma imprensa e da população em geral, devíamos pôr a mão na consciência e avaliar o que é que cada um de nós já fez e pode fazer para mitigar este monstro. Pessoas que praticam voluntariado adoecem menos. A dedicação a algo ou a alguém faz bem à saúde. Contudo, mais uma vez, não é preciso mudar de vida e abraçar uma causa humanitária no Botswana. Às vezes, basta atravessar o patamar do prédio e perguntar à senhora Alzira, de 86 anos, que vive sozinha, se quer uma sopa, ou ajudá-la a carregar o saco das compras. Pequenos gestos quotidianos podem iluminar o dia de quem vive entregue à solidão. Uma coisa é certa: seja qual for a idade, ninguém escolhe a solidão, é a solidão que vai encostando as pessoas às cordas, tal como no conto de Júlio Cortázar, “A Casa Tomada”, publicado em 1946, em que um bando de entidades vai empurrando dois irmãos dentro da sua própria casa de divisão em divisão até os expulsar da sua residência. Este conto, considerado subversivo e antiperonista, levou à demissão do escritor do ensino.
Qual o melhor antídoto? Cientistas, sociólogos e antropólogos têm vindo a insistir no amor como a melhor solução para este tormento. Mas isso ficará para uma próxima crónica.