A geração mais formada de sempre, que ia mudar o Mundo, está a chegar (ou já chegou) à década dos 40 com as expectativas defraudadas. Muitos têm baixos salários, condições precárias, não conseguiram comprar casa e adiaram ter filhos. São vistos como eternos jovens e vivem agora numa luta com a frustração.
Corpo do artigo
Isabel Lopes, 38 anos, tem bem presente a crise de 2008 na cabeça, como filha da classe média que é. Estava a entrar na universidade, no Porto, curso de Literatura, variante de Inglês e Alemão, a correr atrás do sonho de se tornar investigadora e seguir uma carreira académica. E o impacto da crise obrigou-a a fazer-se à vida. Para sustentar os estudos, ter o canudo, começou a trabalhar, sempre a recibos verdes, em part-times que acumulava, uns atrás dos outros. "Fazia visitas guiadas na Casa da Música, dava explicações, aulas de guitarra, tudo o que aparecesse. Cheguei a trabalhar numa loja e até numa fábrica." Queria sair de casa dos pais, foi alugando quartos, a única opção possível. Até que se licenciou, ainda fez mestrado, sem nunca deixar de trabalhar. "E tudo isto culminou comigo a ter de abandonar o doutoramento, após o primeiro ano. Porque não conseguia suportar os custos."
O sonho da carreira académica foi por água abaixo e o resto da vida foi uma procura incessante pela estabilidade, que parecia nunca chegar. "Os salários eram baixos. Ia entregar currículos em mão, sabia falar alemão, francês, fiz trinta por uma linha. E as condições, até em empresas reputadas, eram insultuosas." Até que tomou uma decisão, mudou-se para Lisboa aos 30, "porque as oportunidades não são comparáveis". Durante muito tempo, foi tradutora freelancer, "um trabalho extremamente precário". Foi então que conseguiu uma oportunidade de emprego num banco estrangeiro e acabou a mudar de área para as tecnologias de informação. "Porque me podia dar mais estabilidade. Soube da possibilidade de mobilidade dentro da empresa para essa área e comecei a fazer formações, foquei-me nisso." Entretanto saiu do banco, continua a trabalhar em tecnologias de informação. "Se estou a seguir o meu percurso de sonho? Não. Mudei por saber que era mais garantido. E mesmo as startups que via que eram o sonho do futuro começam a ir pelo cano abaixo. Vou encontrando estímulo mental no que estou a fazer, mas se trabalho com paixão? De todo."
Ainda assim, e apesar da mudança, comprar casa continua a ser uma miragem. "Mesmo com um salário aceitável, com os preços de rendas em Lisboa, sempre tive de partilhar casa. Não havia nem há hoje na minha vida a possibilidade de comprar." A hipótese ainda chegou a pairar quando casou - trocou alianças pelo civil, sem a grande festa tradicional -, andava a fazer um pé de meia, mas divorciou-se recentemente. "Com a separação e o aumento do custo de vida, voltei à estaca zero, o que é assustador. Acabei por conseguir arrendar um apartamento só para mim e investi aí todas as minhas poupanças, a comprar móveis, eletrodomésticos." O projeto de ter filhos também chegou a estar em cima da mesa quando era casada. "Optámos por não ter e um dos fatores era sem dúvida a falta de estabilidade financeira."
Com os 40 anos à porta, Isabel põe-se a refletir. "Ainda recentemente, criaram-se políticas de habitação para os jovens que não contemplaram os principais lesados, que são mais velhos, dos 35 aos 45. Era-nos prometido tudo, supostamente somos a geração mais qualificada, a geração que devia estar agora com algum rumo na vida, mas isso não aconteceu. Tenho amigos que continuam a adiar uma coisa tão corriqueira como comprar carro. Mesmo quem conseguiu uma carreira mais estável, foi demasiado tarde. Há muito cansaço acumulado, muitos dos meus amigos estão em situação de burnout, é uma geração muito exausta."
Isabel é uma dos muitos millennials, nascidos entre 1981 e 1996, que parecem estar a viver uma crise existencial, de frustração, espécie de crise de meia-idade que não é sobre a idade. A geração mais formada de sempre, que queria mudar o mundo, que viveu o advento das startups e cresceu a ouvir que fazer o que se gosta era o mais importante, esbarrou no fosso entre a expectativa e a realidade. A geração que popularizou o debate sobre saúde mental e qualidade de vida, sobre inclusão e sustentabilidade, parece estar agora a questionar tudo, no meio caminho entre o cansaço e a estagnação. Os números sustentam isso mesmo. Segundo o relatório "The emmerging millenial wealth gap", publicado em 2019 pela organização New America, os millennials ganham menos 20% do que os boomers (nascidos a seguir à II Guerra Mundial até meados dos anos 60) na mesma idade - e são mais qualificados. O trabalho de que gostam veio sem estabilidade, muitas vezes sem salário fixo, o empreendedorismo virou precariedade. E adiaram marcos como a compra de casa e a formação de família.
O mito da eterna juventude
Segundo Vítor Sérgio Ferreira, sociólogo da juventude e investigador na Universidade de Lisboa, "estamos a defrontar-nos hoje com a condição de adulto em revolução". "A vida adulta era um período de estabilidade, afetiva, profissional, e neste momento já não é assim. Nem para camadas para quem isso antes era um dado adquirido, que eram as camadas escolarmente mais qualificadas." E isto, sustenta, não é uma questão portuguesa, é uma tendência global. "Há uma precarização do mercado de trabalho nos adultos, um acesso cada vez mais difícil à habitação. E depois há outros marcadores, que eram tradicionalmente vistos como marcadores de transição para a idade adulta e que hoje já são parte estrutural da idade adulta. Por exemplo, adiar ter filhos ou a decisão de ter um segundo filho ser muito ponderada."
Também na vida afetiva há mudanças, "tal como não existem empregos para a vida, não existem relações para a vida, com a democratização do divórcio". Mas o sociólogo tem uma certeza, é que o prolongamento da condição juvenil até muito tarde, o mito da eterna juventude, "é muito funcional para as empresas continuarem a pagar salários baixos". "Há pessoas de 40 anos que continuam a ser qualificadas de jovens e o seu trabalho continua a ser explorado como se de um jovem se tratasse."
O investigador não se identifica com as designações dadas às gerações - nomeadamente os millennials - mas fala da desilusão de uma geração pós-25 de Abril. "Houve um prolongamento da carreira escolar, um acesso mais democratizado ao Ensino Superior, e uma série de possibilidades que foram gerando expectativas, não só nos jovens, como nos pais, que também investiram sacrifício para que os filhos se formassem, em muitos casos foram os primeiros licenciados da família. E a verdade é que estes jovens já não são jovens, são adultos, e continuam a ter os impasses e a instabilidade associados à juventude." No final, o que está a acontecer é que, embora Portugal tenha uma alta taxa de licenciados, "há uma descrença na eficácia do diploma universitário", "uma falta de expectativas" e "sentimentos de insegurança, ansiedade, frustração".
Catarina Oliveira é o espelho disso. Tem 34 anos e não se acanha nas palavras. "Sinto uma desilusão e uma desesperança que foi aumentando a cada ano." A vida é um emaranhado de vaivéns. Estudou Ciência da Comunicação, alimentada pelo sonho de vir a fazer jornalismo de investigação, ainda chegou a estagiar na SIC, mais tarde até conseguiu fazer jornalismo de investigação em São Tomé e Príncipe. Mas, desiludida com tudo o que tinha imaginado sobre a profissão, acabou a mudar de direção, largou o jornalismo, dedicou-se à comunicação empresarial, foi fazer uma pós-graduação, além de pequenos cursos. Passou por agências de comunicação, por uma empresa de software, chegou a trabalhar lá fora, em Cabo Verde. "Chegaram a dizer-me, quando me candidatei a uma vaga, que tinha demasiadas competências para o valor que estavam dispostos a pagar."
Ao cabo de anos de ziguezagues, decidiu recentemente trabalhar por conta própria, faz gestão de comunicação, assessoria, gestão de eventos, de redes sociais. "Os salários eram baixos, trabalhava horas a mais e não recebia por elas, sentia-me estagnada e tomei a liberdade de me despedir. Foi um risco, mas quero ver como corre, estou a tentar conseguir alguma estabilidade." E sim, acredita que houve romantismo no caminho até aqui. "Romantizei o mercado de trabalho, havia uma idealização, venderam-nos essa ideia. Tive experiências internacionais, fiz voluntariado, várias formações, sempre me disseram que isso fazia a diferença. E para quê?", questiona.
Já viu muitos amigos emigrar, a maior parte deles está fora do país. Hoje, Catarina ainda não conseguiu a estabilidade ambicionada. Vive com a mãe, em Famalicão, "uma pessoa olha para o preço das casas e ri para não chorar". "Claro que há uma sensação de falha. Tudo isto influencia a dinâmica da nossa vida, a nível pessoal, familiar. Ficamos hipotecados. Construir família, ter filhos, acabamos a adiar sempre mais um bocadinho. Sinto que há uma grande frustração e que esta geração está há muito tempo a lutar. Muitos de nós ainda dependemos de pais ou familiares para termos uma vida mais ou menos estável. Outros tiraram cursos para estarem a trabalhar num supermercado. Vivemos a ilusão de que, por sermos mais formados, íamos conseguir singrar. Mas não."
O burnout e a carreira
Maria do Céu Taveira, professora na Universidade do Minho e investigadora na área da psicologia vocacional e desenvolvimento de carreira, frisa isso mesmo. "Muitas destas pessoas têm mais escolaridade do que os seus pais, são muitíssimo preparadas, foram educadas num sistema que promoveu valores como a inclusão, o respeito pela diversidade, pelo ambiente, mas quando transitaram para o mercado de trabalho, houve um fosso de princípios, um choque de realidade." Na verdade, à semelhança de Vítor Sérgio Ferreira, não é adepta da noção de geração, "porque é uma ideia socialmente construída". "Uma geração inclui pessoas cuja data de nascimento tem um intervalo de 15 anos e é muito difícil encontrar padrões num conjunto tão largo de pessoas." Apesar disso, tenta pôr os olhos nos millennials. "Ao contrário da geração anterior que trabalhava para viver, estas pessoas passaram a ver o trabalho como meio para aproveitarem a vida. E trouxeram o equilíbrio com a vida pessoal para cima da mesa. Tinham aspirações altas, capacidades elevadas, mas encontraram um mercado muito instável, muito precário. Não têm profissões de estatuto muito mais elevado do que os seus pais, embora sejam muito mais formados." Muitas, lembra, apanharam a crise de 2008, "com uma grande estagnação do mercado de trabalho", e, mais recentemente, a pandemia. "Foram sujeitas a sucessivas crises, estão numa fase de estabilização da carreira, alguns perto dos 45 anos, e continuam num mundo bastante instável, o que os obriga a grande adaptabilidade."
De acordo com a investigadora, muitos millennials estão em subempregos (abaixo das suas qualificações) e sofrem de insegurança laboral. "Com impactos muito negativos na saúde mental. Há dados que mostram que os millennials sofrem muito de burnout." Maria do Céu sabe do que fala, esteve envolvida num estudo em que foram entrevistadas cerca de 400 pessoas desta geração. "Percebemos que a visão que têm de um trabalho digno engloba estar alinhado com os seus valores, ter um ambiente saudável, mas também a possibilidade de progredir, de desenvolver carreira. Quando isso existe, ativam mais as suas competências. Quando não existe, a esperança vai-se perdendo. E começam a não se envolver ou adoecem, o burnout mais uma vez. Há um desânimo grande em relação ao futuro." Mas há um dado positivo, é que "estas pessoas têm capacidades extraordinárias para se reinventarem, mais até do que as de gerações anteriores". A grande questão é que chegaram à década dos 40 e "não alcançaram muito do que queriam na vida".
"Podem ter tido uma visão idealista, até irrealista, porque desenvolveram ideais mais exigentes e a nossa sociedade não avançou a esse ritmo. Mas não se perdeu tudo. São muito mais sensíveis aos aspetos ecológicos, a valores como a qualidade de vida, à inclusão, ao bem-estar coletivo. Têm qualidades fantásticas." E não, não é uma geração perdida. "De todo. Ainda podem fazer, de facto, a diferença."
