"Cidadania Impura" é um espaço de opinião semanal assinado pelo escritor Valter Hugo Mãe
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Alguns amigos exercem o humor profundamente, com identidades divergentes que apelam à imaginação mais do que à etiqueta dominante. Alguns amigos não aguentam se não trouxerem à rua, por natureza, fantasias sem fim que vêm dos livros e dos filmes, da pintura e das fotografias de gente antiga com modas passadas que desapareceram perante o padronizado para que caminhamos. Gosto muito de quem não se intimide perante sua capacidade de fantasia e se apresente mais perto de um sonho do que da realidade consensualizada a que nos obrigamos, uns e outros.
Sei bem o que me parece, uma moça nova vestida de negro, com corpetes, rendas e xailes a espaventar como se fosse para levantar no ar a rir sentada numa vassoura mágica. A Filipa já teve de explicar-se como uma "ser humana", por lhe perguntarem que raio era. Já teve de garantir que não pertencia ao culto. Vestir como para um certo carnaval todos os dias é um compromisso consigo mesma, trazendo à rua uma vastidão de referências que são de uma cultura específica. O que a Filipa faz é dar vida à fantasia, apresentando-se ao mundo como quem propõe algo, mais do que obedecendo simplesmente ao que o mundo propõe. A sua divergência não é por despeito nem agressão, é fascínio, é humor.
Trabalhar com marionetas, e essa maravilha de chegar às pessoas pelos bonecos, que são sempre animados à força de uma criança que sobra em nós, pode servir para justificar que a Filipa tenha a coragem de ser sua própria personagem. Mas eu entendo que nossas personagens haverão de ser nossa maior sinceridade, porque traduzem imediatamente para onde gostaríamos de caminhar, mais do que de onde fomos obrigados a vir. E nós deveríamos definirmo-nos mais por aquilo que queremos ser do que por aquilo que já fomos.
Gosto muito das festas, concertos dos Bauhaus ou do Nick Cave, do festival de Leiria e de todas as vezes em que a Diamanda Galás nos vem alertar para o importante de brigarmos com o sofrimento. Gosto que as pessoas se vistam como se usassem a alma por sobre o corpo. E não o contrário.
No café, pergunto à Filipa como vai, e ela responde: sempre pior. E fazemos de conta que a vida é um horror e rimos. Nosso jeito de provar que, depois de tanta evidência do difícil que isto é, ainda sabemos rir. Conscientes, ainda nos rimos.