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Os rótulos são autênticos? Os produtos bio são mesmo biológicos? As galinhas são realmente do campo? O azeite é só azeite? O bacalhau é bacalhau? O que andamos a comer, afinal? Alterar ou adulterar intencionalmente alimentos trai a confiança dos consumidores. Os enganos não são inocentes. É um processo silencioso e sofisticado, pouco discutido.
O rótulo de um alimento é a sua radiografia, de alto a baixo, por dentro e por fora. De onde vem, como foi feito, seus ingredientes e suas características. O problema é quando as letras que os olhos leem não contam toda a verdade. O problema é quando o que entra pela boca não corresponde ao que foi comprado. É fraude alimentar, é falta de ética, é enganar o consumidor.
De que falamos quando falamos de fraude alimentar? "Falamos de qualquer prática que adultera, substitui ou descreve de forma enganosa um alimento para obter vantagem económica", responde Bruno Almeida, técnico de biologia molecular. Há várias maneiras: trocar um ingrediente por outro mais barato, falsificar rótulos, usar uma designação que não corresponde à realidade.
Exemplos? Há vários. Azeite misturado com óleos vegetais mais baratos e de fraca qualidade. Mel que aumenta de volume no frasco à custa de xaropes de açúcar e não apenas com o líquido produzido pelas abelhas. Leite que leva água, conservantes e soro. Carnes que são misturas de diferentes espécies e que não correspondem às indicações afixadas nos talhos. Carne de cavalo vendida como carne de vaca. Galinhas com o estatuto do campo que, na verdade, são criadas em aviários. Maçãs de Alcobaça plantadas num quintal fora da devida região.
A lista prossegue. Vinhos com a origem incorretamente estampada. Suplementos com teores proteicos abaixo dos valores referidos. Produtos bio ultrassaudáveis que não encaixam na apresentação feita. Bruno Almeida, que é coordenador da unidade de serviços de Biologia Molecular na SGS, empresa líder mundial em testes, inspeção e certificação, tem mais exemplos. "O mesmo acontece com especiarias de alto valor, como açafrão, orégãos ou paprica, que podem ser misturadas com outros materiais sem que isso seja visível."
São estratégias difíceis de detetar. O que os olhos não veem, a boca desconhece, o estômago não sente. "Estas fraudes passam muitas vezes despercebidas porque o sabor, a cor e a textura raramente mudam. Além disso, os alimentos percorrem muitas etapas, desde a produção, transformação, transporte até ao embalamento, criando várias oportunidades para adulteração sem deixar sinais evidentes", refere o especialista em biologia molecular.
Armando Venâncio, professor do departamento de Engenharia Biológica da Escola de Engenharia da Universidade do Minho, usa uma expressão conhecida e popular. "Vender gato por lebre, isso é fraude alimentar, não causa dano ao consumidor do ponto de vista da sua saúde. Se a fraude for bem feita, só causa dano económico." O produtor aldraba o produto, o cliente é ludibriado. "Se o gato estiver saudável só faz dano à carteira do consumidor e, se calhar, ao seu ego porque foi enganado."
A fraude é normalmente feita por quem conhece como o controlo alimentar funciona. Armando Venâncio recorda alguns casos que vieram a público. Carne de cavalo misturada com a de bovino em embalagens de lasanha. Aconteceu em Portugal. Na América do Sul, corantes vermelhos em malaguetas para dar a intensidade que se associa ao condimento. "Se a fraude for bem feita, ninguém sente nada." Não foi o que aconteceu no caso do leite em pó na China. Uma proteína era substituída por um químico para passar pelo controlo, o químico acabou, começou-se a produzi-lo de forma mais barata, morreram bebés, descobriu-se a fraude.
Maria Miguel Carvalho é professora na Escola de Direito da Universidade do Minho, investigadora no JusGov - Centro de Investigação em Justiça e Governação, debruça-se sobre temas como propriedade intelectual, direito das marcas, origens demarcadas. A denominação de origem e a indicação geográfica de alimentos, como, por exemplo, o azeite de Trás-os-Montes, as alheiras de Vinhais, o queijo Serra da Estrela, o vinho do Douro, são designações e símbolos de respeito, conseguidos à custa de requisitos exigentes. "Podem ter muita relevância para os produtores, por um lado, e para os consumidores, por outro, por determinadas garantias de credibilidade", observa a investigadora. São produtos de prestígio, protegidos juridicamente, sujeitos a legislação, a normas e regras, a regulação europeia, a um caderno de especificações. A reputação desses alimentos pode ser determinante na hora de comprar pela confiança no sistema. O problema é quando a fraude coloca em causa o respeito pelo mercado.
Por vezes, há notícias e desconfianças. Recentemente, a operação "Puro verde", da Polícia Judiciária, chamou a atenção para um alegado esquema que terá omitido o dever de fiscalização da origem e percurso das uvas dos vinhos verdes e depósito em adegas e produtores, durante a vindima deste ano.
No mês passado, a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) apreendeu cinco toneladas de mel embalado e a granel, em Évora e Aljustrel, e avançou com um processo-crime pela presumível prática de falsificação de documentos e fraude sobre mercadorias, além de uma contraordenação por indução em erro dos consumidores em relação à origem do produto. No mesmo mês, andou por supermercados, hipermercados, minimercados e mercearias, numa ronda por produtos à base de carne, e apreendeu mais de 82 quilos de géneros alimentícios por falta de requisitos e incumprimento das regras de rastreabilidade e rotulagem.
As suspeitas, o combate e a credibilidade
Os consumidores sentem-se enganados, a confiança cai por terra, a cadeia agroalimentar fica sob suspeita, a credibilidade abalada. Maria Miguel Carvalho fala do assunto, da qualidade do produto e da sua publicidade serem suscetíveis de induzir o consumidor em erro, das práticas comerciais desleais. "Há meios jurídicos para sancionar estas situações." Há multas e penas de prisão, mecanismos para impedir que os consumidores sejam enganados.
Mas não se pode colocar tudo no mesmo saco. Nem todas as situações de falta de autenticidade alimentar, quando o produto é exatamente aquilo que o rótulo indica - espécie certa, ingredientes corretos, origem indicada e método de produção - são fraude. "Toda a fraude envolve perda de autenticidade, mas nem todas as situações de falta de autenticidade são fraude. Em muitos casos, trata-se de erros operacionais, variações naturais, falhas no controlo de qualidade ou até contaminações acidentais ao longo do processo produtivo, situações sem intenção de enganar o consumidor", esclarece Bruno Almeida.
O combate à fraude alimentar devia assentar na lógica de quanto mais se testa, melhor se conhece a realidade, mais cedo se detetam problemas. "A proteção do consumidor começa com controlo e transparência. Hoje, os testes laboratoriais são mais acessíveis e precisos e permitem confirmar se um produto é realmente aquilo que diz ser, seja um azeite autêntico, um mel puro ou um peixe corretamente identificado", realça Bruno Almeida.
Rastrear é importante. "Quando cada passo desde a produção ao transporte fica registado, torna-se muito mais difícil que uma adulteração chegue às prateleiras." Há ainda certificações independentes, auditorias e programas de controlo, que ajudam a reforçar a confiança no sistema, que criam várias camadas de proteção e reduzem o risco de fraude.
Armando Venâncio explica que, na área alimentar, o controlo que se faz incide sobre quatro vertentes. Uma delas é a fraude alimentar. Outra é a segurança alimentar, se os alimentos estão ou não contaminados, por bactérias, por pesticidas. Outra é o uso de alimentos em ações terroristas, a contaminação deliberada de alimentos para causar pânico na população. Outra, geralmente confundida com segurança alimentar, é a segurança de se providenciar alimentos para a população para combater a fome ou a má nutrição, por exemplo. A fraude é fraude e é crime. "Aldrabar o produto de forma a que o consumidor pague um valor acrescentado", resume o professor.
Ainda no mês passado, a ASAE fiscalizou 93 comerciantes de moluscos bivalves vivos, em mercados e no comércio a retalho. O propósito era verificar ilícitos criminais contra a saúde pública no respeito pela segurança alimentar. Resultado: um processo-crime pelo crime de especulação e nove processos de contraordenação, por incumprimento na comercialização, na rastreabilidade, na informação sobre lotes e peso.
O tema raramente ganha destaque público, por vários motivos, segundo Bruno Almeida. "Quando não há danos imediatos, a discussão fica limitada a especialistas e ao lado mais técnico do setor." Por exemplo, continua, agora no Natal, período de maior consumo de bacalhau, "se alguém comprar "bacalhau do Atlântico" e, na verdade, estiver a consumir paloco ou outra espécie mais barata, não terá qualquer problema de saúde, desde que o produto esteja seguro". "O que acontece é simplesmente que pagou mais por algo de menor valor comercial, caracterizando uma fraude económica, mas não sanitária", sublinha.
Por outro lado, acrescenta, nem sempre é fácil perceber onde termina uma falha operacional e onde começa a intenção de enganar. "Uma troca acidental de rótulos, uma contaminação cruzada ou um erro logístico podem originar inconformidades que se parecem com fraude, mas que não resultam de uma ação deliberada."
Há ainda outro desafio estruturante, nota Bruno Almeida. "O universo alimentar é vastíssimo e muitos produtos continuam sem métodos analíticos específicos para detetar todas as adulterações possíveis. Só com o avanço da ciência, e com testes cada vez mais acessíveis, é que começamos a identificar situações que anteriormente passavam totalmente despercebidas." Seja como for, com a alimentação não se brinca.
