Carlos Mendonça anda por feiras e sucatas à procura de objetos com história para recuperar na sua oficina. Tiago Rodrigues de Sousa restaura arte sacra, móveis antigos. Filipa Correia junta cacos de louça partida e ensina a emendar cerâmica. São jovens, usam as mãos, e veem beleza em artefactos de outros tempos.
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Na bancada de trabalho, estão várias peças para restauro: um triciclo que é um cavalinho de madeira maciça pintada do início do século XIX, uma grafonola antiga, uma lamparina a petróleo dos anos de 1960. Carlos Mendonça não tem manuais de instruções, é autodidata na arte de restaurar objetos antigos. Desmantela cada peça com extrema minúcia, com muito cuidado. “É ao desmontar que aprendo a montar”, conta. Da janela da sua oficina, veem-se campos e pinhais da aldeia de Damonde, em Oliveira de Azeméis, Natureza em estado puro, e o rio Antuã corre lá em baixo.
Um carrinho que é brinquedo, esverdeado e enferrujado, movido a pedais, de meados do século passado, também aguarda por voltar a funcionar. Pelas estantes, estão outros objetos, mais uma grafonola totalmente mecânica, um fogão a petróleo da marca Invicta, uma cafeteira da Alba, uma máquina de triturar frutas para compotas. Carlos Mendonça aceita tudo o que lhe pedem para consertar. “Digo sempre que sim a tudo, prometo que não estrago, e o que não sei reencaminho para quem percebe.” Tem-se saído bem. Costuma ouvir alguns mestres das redondezas, gente mais velha que partilha o que sabe, e faz pesquisas cirúrgicas na Internet. Tudo ajuda a dar uma nova vida a peças que lhe depositam nas mãos e que poderiam perder o brilho e o uso para sempre. “O que era defeito, hoje é valorizado por ser único”, observa. Tem clientes por todo o país e alguns emigrantes batem-lhe à porta.
Um pouco mais a norte, Tiago Rodrigues de Sousa tem um espaço com montra envidraçada para a Rua de Antero de Quental, no Porto. Vê-se de fora para dentro, de dentro para fora. Em cima da mesa da oficina está uma moldura com mais de cem anos a ser restaurada num processo com várias fases. Chegou leve, agora está mais pesada e robusta, todos os detalhes lhe interessam. “Cada peça que passa por aqui não avança sem lhe pôr os olhos em cima para saber como está e do que precisa”, explica. Restaura de tudo um pouco, móveis antigos, cadeiras, mesas, relógios de parede, arte sacra, castiçais, oratórios, santos, entre outras coisas. Em lista de espera, tem o restauro e pintura de uma bandeira de procissão e a construção de um altar numa igreja de Gondomar. Nas peças mais antigas para arranjo, recorda-se de um menino Jesus do século XVIII e de um santo do século XVII que “apanhou bolor, água, fungos”.
O que o fascina é dar nova vida aos objetos, muitas vezes, trabalho lento e demorado de dar corpo ao que poderia desaparecer. “É saber que a peça chega aqui num estado crítico, quase morta, e conseguir recuperar a sua essência e a sua beleza – e que, se for bem cuidada, pode durar mais cem anos”, confessa. Não é por acaso que chama “bloco operatório” à sua bancada de trabalho com ferramentas penduradas na parede, algumas herdadas do seu bisavô, António Pereira Dias, entalhador de renome do Porto no início do século passado.
As ferramentas de Filipa Correia são outras. O objeto de estudo na universidade moldou-lhe os passos. Esmiuçou o ciclo de vida da cerâmica na tese de mestrado em Design para a Sustentabilidade, na Faculdade de Belas Artes, em Lisboa. Seguiu-lhe o rasto com atenção e verificou que a maior parte desse material morre num aterro sanitário, não há sistema de reciclagem que o salve. Durante quatro anos, trabalhou, como freelancer, na área de conservação e restauro de igrejas, monumentos, fachadas de edifícios históricos, muitos painéis de azulejos. Depois criou o seu projeto, a sua ocupação com o sugestivo nome “Junta cacos”. É exatamente isso que faz.
Reconstrói peças partidas, pratos, chávenas, jarras, taças, todo o género de louça, tanto antiga como moderna. Com cacos que lhe dão, restos de fábricas e vizinhos que sabem que aprecia pedaços que parecem não ter solução, faz novas peças como brincos, vasos, suportes de tachos, de copos, de velas, que vai vendendo por mercados e feiras no Porto.
Há relíquias que lhe chegam às mãos para restauro, peças partidas ou lascadas que têm um valor emocional, inestimável e irrepetível para quem as guarda e quer que continuem a viver. Como uma pequena chávena com motivos dourados pintados pelas mãos do avô de uma cliente, das primeiras peças da Vista Alegre, e que cheira a saudade. Como peças de cerâmica de avós que as famílias querem ressuscitar numa ligação que extravasa o que é palpável, material. Um vaso que foi uma oferta especial, um prato que lembra quem já partiu.
Memórias, saudades, ligações sentimentais
Em miúdo, no espaço de arrumos e de arranjos de alfaias agrícolas que o pai usava nos trabalhos da terra, e que agora é a sua oficina, Carlos Mendonça ganhou aquele gostinho por perceber as peças por dentro, sua mecânica e funcionamento, nessa curiosidade de criança. O bichinho não passou. Começou por recuperar uma bicicleta muito velha, demasiado ferrugenta, uma autêntica pasteleira. E foi por aí fora. “Comprava bicicletas todas estragadas, afinava-as em casa, e vendia-as.” Nunca mais parou. Pasteleiras, máquinas de costura, máquinas de escrever, máquinas registadoras, moinhos de café, guarda-joias com música e com bailarinas que dançam, caixas de música, candeeiros a petróleo, relógios de parede, balanças, rádios antigos, maçaricos, lentes da ferrovia. Cada peça é um desafio, uma descoberta. “Não há manual, é tudo de cabeça.”
Carlos Mendonça cresceu na aldeia, a oficina fica nas traseiras de casa dos pais. Batizou-a de “Oficina de histórias” há cerca de sete anos por razões simples de explicar. “Gosto muito de antiguidades pelas histórias que nos transmitem, cada peça tem uma história.” Tem tudo no sítio, ferramentas, tintas, diluentes, vernizes, máquinas, tudo organizado, nada fora do lugar. Não funciona de outra maneira. “Se não estiver arrumada, não consigo trabalhar”, garante.
Frequenta feiras de velharias e sucatas, está atento ao que aparece nos mercados da Internet, compra recheios de casas de família e de palacetes, transporta as antiguidades numa carrinha de caixa aberta. “A parte das sucatas é o que mais gosto, aí vou ao fim de linha, onde tudo se poderia perder ou tornar-se num parafuso.” Aos 31 anos, Carlos continua interessado no que é velho, antigo, no que tem história por dentro e por fora.
Cacos emendados com ouro
Filipa Correia tem 28 anos, é da Maia, e também dá workshops inspirados na técnica japonesa Kintsugi, que significa emenda de ouro. Há uns domingos, na parte da manhã, orientou mais uma oficina, na Rota do Chá, na Rua de Miguel Bombarda, no Porto. Dez participantes, dez peças de cerâmicas partidas, é tempo de juntar pedaços, restaurar aqueles objetos, alguns com valor sentimental. Em cima das mesas, bisturis, lâminas, pincéis, resina à base de água, pequenos boiões de pó dourado, taças com água. Duas horas, olhos focados no restauro, luvas azuis nas mãos, música baixinha em som de fundo. “É um trabalho delicado e minucioso”, comenta Filipa Correia. As peças são frágeis, precisam de toda a atenção. Colar, preencher, retirar o que está a mais. “Tiramos o excesso com o bisturi”, indica. É arte que exige paciência e querer.
“Tenho um percurso longo e muito pouco convencional”, diz Tiago Rodrigues de Sousa, que estudou História na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, área de que gosta, só que achou o curso “absurdamente teórico”. Licenciatura feita, queria a parte prática, foi aprender marcenaria numa empresa de conservação e restauro, em Paredes, com o senhor Ernesto, que lhe elogiou o jeito e o incentivou a abrir o próprio espaço. Pensou bastante na ideia. “Ninguém me conhecia, ninguém sabia da minha qualidade, era completamente novo no ramo, atirei-me para uma área absolutamente desconhecida”, lembra. Seguiu em frente. Há três anos abriu a oficina de cinco metros de largura por 200 de comprimento, da porta de entrada à ponta do jardim das traseiras onde tem mais peças para restaurar, ferramentas guardadas, e azulejos com mais de cem anos que uma família lhe pediu para ver se tinha solução e que ele dispõe na relva como um puzzle. Uma parte talvez tenha arranjo, outra será difícil.
“Pergaminho vanguarda” é o nome do seu espaço e negócio. “O nome é curioso, é uma sugestão do Estado”, revela. Era uma das propostas indicadas no momento do registo da empresa. Calhou bem, admite. “Em duas palavras, consigo ter o antes e o depois, coisas antigas para o futuro.” Tiago foi fazendo várias formações, de pintura, de talha, vai dando formações de restauro de peças de madeira, de metal, ensina como matar o bicho da madeira. É copista de documentos medievais, faz iluminuras, anda pelo país e mostra recriações históricas com fins pedagógicos nas cópias que faz desses escritos antigos, ao vivo e a cores, preenchendo páginas com a sua letra delicada e tinta feita por si.
Tiago e Carlos também são colecionadores de antiguidades, não conseguem resistir. Carlos tem uma grafonola de bolso suíça com mais de cem anos que ele e o pai encontraram perdida no lixo de uma casa. Tiago tem várias peças de metal e construiu um relicário.
Filipa vira-se para vários lados, compôs kits de Kintsugi para iniciados e avançados com um manual e as ferramentas necessárias que vende online, continua a ir buscar peças de cerâmica partidas ou com defeitos a fábricas, e a reparar fissuras de objetos antigos que já não estão inteiros. Não querer deixar morrer peças imperfeitas e únicas. É o que cada um faz, à sua maneira, com o seu jeito, com a técnica de preservar o que é antigo, o que é velho, o que tem uma história para contar.