"Cidadania Impura" é um espaço de opinião semanal assinado pelo escritor Valter Hugo Mãe
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Era a minha Isabel que falava tão bem do Henrique, daria para fazer dele um alarido de Natal, uma gambiarra inteira para o São João, um nascimento a cada instante de chiuauas arreliados de lindos. A Isabel falava do Henrique como se ele tivesse braços de mil metros e abraçasse a aldeia, as pessoas todas sob seu cuidado ou dentro do seu amor.
Conheci-o mais tarde. Muitos anos depois de já saber sobre ele. Quis a vida que a Isabel fosse para Coura e que o Henrique vivesse num canto de Vila Nova de Cerveira, e que eu me metesse a correr para norte a matar saudades e a brigar contra amigas que alonjam.
Fomos jantar à casa dele e os chiuauas ladravam com fúria de leão e corpinhos de rato. Não deixavam que os pegasse, e eu adoro canitos mínimos. Víamos os tantos quadros pelas paredes, a obra do Henrique e de muitos colegas, e a promessa era a de que a comida seria tão boa, até as estrelas Michelin vinham espreitar à janela, invejosas e com água na boca. A noite estrelava em modo grife de luxo, nós dizíamos sobre assuntos de rir e tudo estava bem.
Para mim, o Henrique passava a significar uma alegria digna. Dessas feitas com consciência e esforço, metidas sem medo a ajudar os outros, a ver as aldeias onde se passa solidão e se adoece com uma espécie de lentidão por dentro. É um homem que sustenta ou segura, que carrega ou empurra, que alimenta ou adormece quem não larga os olhos com facilidade. Passou a significar o que a minha Isabel me contava, mas sem que fosse de contar. Era algo de saber. Eu soube.
Os pintores são quase todos estranhos e sem garantias. Gosto muito de pintores e chego perto para gostar mais, mas é verdade que não costumam saber cozinhar e, por vezes, não abraçam de leve, como quem sente ao invés de apertar. Os pintores são lindos, mas quase ninguém é lindo como o Henrique.
Quando vejo chiuauas lembro sem remédio daquela casa e de como parecia jantarmos entre cem anos de pintura, a casa toda forrada de maravilha e a mesa posta como se fosse o centro do mundo inteiro. Quem ali nunca sentou perdeu a varanda que deita para dentro de cada um. Para o que temos de mais grato para entregar aos outros. Sei que não é assim pela casa. É assim pelo Henrique.