Cidadania Impura
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Estavam uns rapazes novos encantados à espera. Havia neles um lume que lhes bulia os pés e acendia o olhar. Olhavam adiante à espera e eu não entendi imediatamente o que queriam. Mas queriam muito. Eram mais jovens só pela alegria. Todos somos mais jovens pela alegria. Fui perguntar o que era. Que era aquilo de esperarem, talvez eu pudesse ajudar. E eles responderam, como se partilhassem comigo o segredo que lhes fora maravilhosamente revelado, que a Ilda iria chegar ali. A Ilda Figueiredo. Viria jantar ali, tinham a certeza. Estávamos n’O Ernesto, o restaurante de longa história na Rua da Picaria, no Porto. Por sorte minha e tão grande acaso, a Ilda jantaria exactamente comigo nessa noite. Entre mais alguns amigos, como jantámos dezenas de dezenas de vezes.
Vi mil pessoas gratas em torno da Ilda. Quando andamos pelas inaugurações das galerias de arte, quando nos encontramos para conversar, é tão frequente que alguém venha fazer uma festa de grande alarido ao ver a vereadora da Câmara do Porto. Sei bem o que é ter o nosso trabalho celebrado por alguém que nunca vimos antes. E sei bem da salvação profunda que isso pode gerar em nós, mas o que acontece com a Ilda é de outro foro. A gratidão das pessoas assenta numa concretude desarmante. Por norma, devem à Ilda a conquista de suas casas e seus empregos, devem-lhe pelo auxílio efectivo na fome ou na doença, nos trâmites das mortes dos familiares, suas burocracias e dores, terapias e amizades. As pessoas que esperam pela Ilda são para lhe venerar os gestos, explicar como lhes mudou a vida da desgraça para a paz, para a dignidade.
Naquela noite, os rapazes à porta do restaurante queriam agradecer. Um deles passara toda a infância desabrigado ou num casebre infame. Foi a Ilda quem tomou conhecimento das condições miseráveis da família e intercedeu incansável para o seu acolhimento numa casa condigna. Reunidos, aqueles rapazes eram a felicidade sincera de quem se juntara num mesmo bairro, muito mais salvos para a vida, como muito mais futuro, com essa coisa da esperança que tanto podemos desprezar, mas que é imperdível para quem não pôde tê-la antes.
Eu quis ficar ali pelo passeio a tentar ver quando a Ilda dobraria a esquina, vinda do fundo da rua, subindo à surpresa bonita que ali se preparava. Por vezes, com os afazeres da vereação e outros em que sempre está empenhada, a Ilda demorava. Não podemos nunca contar com ela numa hora de rigor. As pessoas cheias de salvações para entregar não podem ocupar-se de mordomias da pontualidade. A fome e o medo, a tristeza e o frio tornam tudo prioritário. Mas eu fiquei no passeio com os rapazes e vi como ela chegou. Havia alguma coisa de uma mãe que reencontra a criança que criou. Não uma criança que tivesse feito nascer, mas uma que impediu de morrer. Devíamos todos ser mães e pais das crianças que impedimos de morrer. A parentalidade é de muitas maneiras. Pareceu-me esta a mais bela, a mais generosa, de todas.