"Pai aos 50" é um espaço de opinião semanal assinado pelo escritor Joel Neto
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E, no entanto, ele pôs-lhe a ponta da sapatilha em cima e esfregou-a sobre o pavimento, como se se livrasse de um perigo. Gelei.
Estávamos no fim das férias, todos já com muita fome, acabados de sair do hotel que nos tinham indicado como a última possibilidade de se encontrar uma paella na cidade. Também não havia. Até que, à saída, caminhando candidamente sobre as lajes de cimento, uma joaninha atravessava o passeio.
Baixei-me, apontei:
- Olha uma joaninha, Artur!
Ele acocorou-se, naquele jeito meio tosco com que as crianças pequenas se acocoram. Ficou a olhar com um sorrisinho benigno, o que me pareceu apenas mais uma das tantas provas que vou coleccionando da sua boa índole - e, desfazendo as cócoras, abateu o animal.
Fiquei em choque. Lembrei-me da minha irmã a espezinhar um bicho-pau para o qual eu lhe chamara a atenção, numa das primeiras demonstrações da rudeza do campo com que, acabado de regressar à ilha, confrontei os modos trazidos da cidade. Ainda hoje aquele momento me visita, como um sinal. E, de repente, o meu filho de três anos, nem três anos ainda, ali, a fazer o mesmo - com uma joaninha. Estragou-me o almoço.
"É o que dá ser educado por raparigas do Raminho", resumi para mim mesmo. Pensava nas assistentes do colégio, com crueldade, porque por outro lado não queria pensar em coisas piores, como naquele adolescente da Netflix que embalava gatinhos em vácuo.
Mas, ao voltar para casa, enquanto serpenteava pelas brandas colinas andaluzes, com o pequeno a dormir no banco de trás e a Marta tentando encontrar posição para a barriga no lugar do passageiro, perguntava-me sobretudo isto: como é que se forma, no que consiste e o que verdadeiramente diz de nós a nossa relação com os animais?
Porque não podem ser só factores ambientais. Eu vivia na Terceira há 35 anos, quando ajudava a minha mãe a degolar galinhas. E vivo na Terceira hoje e tenho dificuldades em fazer mal até a um rato. E também não podem ser só os modos de vida. Em Lisboa, rodeado de bem-aventurança, adorava proclamar-me apreciador de touradas de praça (embora não o fosse), ao passo que hoje até as touradas de corda me parecem boçais, ainda que fundamentalmente inofensivas para os bichos.
O facto é que todos nós somos mutantes. E incoerentes (eu continuo a comer bichos). No fim, há-de emergir um carácter próprio, parte sensibilidade e parte consciência, feito de aglutinações, bissectrizes e também experiências. A experiência é fundamental: ter matado uma joaninha pode até vir a ser a grande aprendizagem do meu filho.
Mas, então, vou tentar que não se esqueça disso. Da próxima vez que nos cruzarmos com uma, havemos de deter-nos outra vez - e, quando ele desfizer as cócoras e erguer a sapatilha, esticarei um dedo:
- Artur.