Corpo do artigo
Havia uma graça sincera no senhor João. Um sorriso que era todo cordial e muito feito de saber estar com os outros. Eu julguei sempre que era paciência. Uma paciência que lhe dava para as pessoas. Os adultos não são pacientes com as crianças, quero dizer, poucos serão. Quando menino, foi o que primeiro reparei, como parecia ter tempo para escutar o que dizíamos, o que queríamos, como se já fôssemos gente e pudéssemos aceder ao importante dos dias. O senhor João lembrava-se e perguntava e motivava. Por ele, haveríamos de conquistar todos os sonhos. Haveríamos de ser o que mais quiséssemos, porque tudo era possível e até ajudaria.
Lembro-me de poucos adultos assim, que me tenham feito sentir que as minhas perguntas não eram desnecessárias e que adiar-me era boicotar o meu futuro e matar, passo a passo, cada sonho. Os adultos da minha infância iam ocupados com suas ganas de trabalhar ou divertir, nós valíamos como esperados dali a vinte anos. Valíamos como uma terra que se visitaria mais tarde. Deixados a medrar quietos, para ver no que daríamos.
O senhor João explicava coisas de viagens, lugares longe, notas dos bancos estrangeiros que tinham nomes e rostos diferentes, com cores ou pássaros. Alguns países tinham dinheiro que fazia rir porque era tão alegre. E outros tinham árvores lilases. Todas floridas como se eufóricas. O senhor João sabia disso tudo. Tinha livros dos pintores famosos e pensava que era bom que todos fôssemos ver obras de arte para nos admirarmos com o belo e o feio.
O senhor João conheceu o Ruy Belo, e eu ainda fui amigo da Teresa Belo. Mas ele era amigo da Teresa e do Ruy e esteve mil vezes com eles. Que luxo tão grande ter visto e ouvido um dos meus favoritos. Como se ele fosse tão normal que quase me aconteceu conhecê-lo também. A cidade parece ter esquecido o poeta. Com a morte do senhor João, esquece mais ainda.
O senhor João é avô das minhas sobrinhas. A vida fez com que ele se tornasse família. A família, eu agora penso, morre para dentro de um milagre. Mesmo que não aconteça a mais ninguém, acontece certamente à família. Isso de morrerem para dentro de um milagre que nos haverá de reunir a todos novamente. Em festa. Em profunda alegria por nos havermos pertencido uns aos outros.