Cidadania Impura
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Arreliar uma bahiana só pode ser feito por alguém com muita prática. O acarajé haverá de justificar o fervido dos espíritos bahianos mas é na africanidade que julgo encontarmos explicação para um orgulho e bravura que não podem mais quebrar. Tudo na Bahia é esforço para glorificar um povo que se viu massacrado. A Bahia vive para dizer que nunca mais. E isso só se faz com esplendor e ferocidade.
Quando o Ricardo me apresentou a esposa, a Laís, no dia em que cheguei à sagrada cidade de Salvador, eu coloquei a minha vida na bandeja e disse: eu não gosto das bahianas. Não gosto. A Laís, atónita, deve ter imaginado que seria bom cavoucar no meu peito com uma pá a ver se havia uma pedra sobre meu coração. Eu, como todas as pessoas com alma de anjo, adoro a Bahia. E sei que ali é a boca do leão. O Brasil inteiro pode ser curado a partir daquela terra, como quem volta à infância para compor seus traumas. A Bahia é o Brasil e seus começos traumáticos. Se quisermos que o país dê certo, temos de encontrar modo de dar certo naquele Estado, o lugar onde se ergue o templo imaterial do Brasil, o lugar da boa assombração.
De todas as vezes que comi acarajé fui parar ao hospital. Por desgraça, sou despreparado para a demanda do dendé. Eu bem que tentei, porque gosto e porque penso sempre que nos habituamos. O corpo aprende e naturaliza. Mas não parece possível. E também não quero gastar meus dias sempre breves na Bahia deitado numa maca. Prefiro arreliar as pessoas que dançam e cantam, prefiro barafustar como doido diante da maravilha.
A Laís também não tem tempo para perder. Tudo nela é o brio da ancestralidade. Ela tem de cumprir tudo o que foi deixado incompleto pela História longa de proibições e extermínios, de censuras, silêncios, gestos que foram adiados porque não eram entendidos nem respeitados pelos poderes instalados. Tanto tempo decorrido depois da independência do Brasil, o que mais noto é que uma vasta multidão não teve ainda modo de reconstituir seu percurso. Não houve ainda como chegar à sua raiz. Sim. À origem. E nenhum de nós se explica sem saber francamente de onde vem, quem foram os seus, aquilo que sonharam para o futuro, nosso tempo, o que fazemos com sua glória e onde está seu património. Queremos olhar para suas terras e ver nossas terras, nossa fauna e nossa flora, nossa pele do Mundo.
Quando ri com a Laís, eu estava celebrando sua força. Meu jeito de dizer que não se detenha. Jamais volte ao silêncio do passado. Seu tempo agora é todo palavra. A palavra vai virar pedra e ferro, vai virar pão e água, vai ser corpo e vai ser viva. Não feche a boca e fale, que mesmo depois de morrer sua fala assombrará os torpes que ainda nascem. E isso é glória.