"Cidadania Impura" é um espaço de opinião semanal assinado pelo escritor Valter Hugo Mãe
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Quando, há anos, tive o privilégio de encontrar Lou Reed, um pouco antes do concerto que daria em Coimbra, imediatamente me explicou que se encontrava com o seu instrutor de tai chi, homem que o acompanhava nas suas digressões com a importância de um deus de uso pessoal. Não me surpreendeu, pois, que Laurie Anderson, no brilhante concerto apresentado no Porto, contasse que Reed é mais conhecido na China como pensador do tai chi do que como músico.
Igualmente, se tivesse de definir Laurie Anderson, haveria de passar pela ideia de meditação, crítica, denúncia, ensaio. A compositora nova-iorquina ensaia continuamente sobre o Mundo e a música é mais uma linguagem que utiliza para que as ideias se exponham. Toda a arte tem que ver com isto, mas o caso de Anderson é especificamente relacionado com uma certa limpeza de espírito que advém de ponderar muito bem acerca do papel que lhe compete enquanto figura pública e enquanto cidadã.
Para mim, Laurie Anderson é uma escritora de textos solúveis em som. E não porque se fascine apenas com experimentar os limites do que a tecnologia nos oferece, mas porque busca equilíbrios, uma humanidade maior, ou uma sobrevivência mais digna, algo que me inspira a fusão, a relação, o modo sincero de aceitar.
Quando sugere à plateia que experimente alguns gestos do tai chi, a escritora está a convidar a multidão a um estado superior de existência. Um que se faça de tudo ao mesmo tempo, sobretudo da consciência de sermos tão únicos quanto também partes de uma vastidão de indivíduos. Por isso, é preciosa a lição que deixa, a de que a vida vale pela corrida ao bem-estar, ao tempo de gozo, ao instante em que as dores não superam a noção do privilégio de existir. Todos urgimos em atingir essa alegria lúcida que assenta no simples facto de agradecer pela oportunidade de existir.
Acredito em tudo o que a senhora Anderson diz, porque preciso de acreditar numa mulher de setenta e oito anos que parece uma menina armada de felicidade, com mais capacidade para pular do que eu, com mais beleza do que muito sol que dá nos dias. O Lou Reed, que sabia acerca do dia perfeito, soube muito acerca da mulher perfeita também. Estou certo disso.

