"A vida como ela é" é um espaço de opinião semanal assinado pela escritora Margarida Rebelo Pinto.
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Um dos maiores prazeres a que aspiro nas férias é tempo para ler. Talvez por isso prefira o campo à praia, porque ler um bom romance requer silêncio, ou pelo menos algum sossego, e o campo tem esse encanto; a vastidão, o murmúrio suave das árvores, o chilrear incerto das aves convidam ao recolhimento. Nunca viajei sem levar pelo menos um livro no saco de mão. Se a estadia é curta, um volume chega-me, mas se passa de uma semana, levo mais um ou dois.
Os livros possuem a capacidade mágica de nos fazerem companhia mesmo antes de os abrimos. Ficam a descansar na mesa de cabeceira, qual trovador apaixonado que aguarda que a dama a quem quer declarar o seu amor assome à varanda para lhe cantar uma serenata. O livro espera, porque sabe que é eterno. Sabe que a tinta que lhe deu vida e o papel que o materializou não serão destruídos pela erosão do tempo. Acredito que cada livro sonha em ser agarrado pelo leitor certo, da mesma maneira que são as histórias que apanham os escritores, uma espécie de feitiço que os obriga ao árduo e maravilhoso trabalho de a contar. Árduo porque parte do nada para chegar a um fim, maravilhoso pela mesma razão.
No início deste verão mergulhei no romance de Joana Leitão de Barros, "A irmandade invisível", que foi de férias comigo. Por vezes os livros conseguem meter-nos dentro da vida dos seus personagens; pensamos, sentimos, respiramos, sofremos e choramos com eles. Ocorre um fenómeno de quase fusão, e a sensação é tão profunda e reconfortante que só queremos prolongar o mergulho. Foi o que me aconteceu com este romance, em que, a pretexto do desaparecimento misterioso da melhor amiga da infância, a protagonista regressa ao período mais agitado da segunda metade do século XX em Portugal, o pós-25 de Abril, com todas as transformações e convulsões sociais, políticas e económicas. E foi através dele que resgatei memórias perdidas do meu tempo de pré-adolescente. As descrições da vivência no Colégio do Sagrado Coração de Maria transportaram-me à Primária no Externato de São José, os retratos das diferentes personalidades das freiras avivaram a minha memória adormecida onde revisitei a alegria contagiante da Madre Isabel, que se pelava por cantar com os alunos, a serenidade da Madre Patrocínio, uma torre de gente enfeitada com um terço de contas de madeira à cintura e uns enormes óculos de massa estranhamente parecidos com os do meu pai, e a antipatia feroz da professora de ginástica, que me punha a tremer de medo sempre que me fitava, o cabelo já grisalho e crespo e a pele grossa, intimidando as alunas no momento do salto sobre o cavalo de arções. Ainda hoje lhe atribuo o meu pânico em caminhar por carreiros estreitos, fazem-me lembrar a trave cuja travessia a direito representava sempre um suplício. Entre os seis e os dez anos, aquela mulher que parecia um homem inundava os meus pesadelos e foi por causa dela que desejei possuir a arte de me tornar invisível, a tal ponto que, já na idade adulta, invejei o manto do Harry Potter. Propositadamente não revelo mais sobre esta obra, prefiro deixar quase tudo por dizer a quem o quiser apanhar.
Fui muito feliz com ele, o que melhor se pode dizer de um romance?