Cidadania Impura
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A Márcia é casada com o Filipe mas eu já disse que a queria só para mim e não me importa nada a falta de educação de cobiçar a mulher alheia. As pessoas não são alheias, quero dizer, não se entregam como mercadorias. Estão sempre a tempo de serem mais felizes.
A Márcia está a revelar o seu novo disco e eu sinto um conforto muito raro escutando suas canções, como se na música que faz houvesse uma qualidade mágica de me fazer sentir em casa. Eu não entendo como as pessoas criam aquilo que nos parece de nossa própria intimidade, sem saberem tantas vezes que sequer existimos. Chegam como de dentro de nós mesmos, lugares iluminados que até então não entendíamos.
Costumo apaixonar-me para a vida. Sou estável, fiel, e nunca esqueço o afecto que tive por alguém. Não faço aquele género dos que renegam o carinho. Sou grato por qualquer pouquinho de atenção e só pareço farto de amores para não padecer mais ainda. E a Márcia sempre se meteu pelo coração adentro, canção a canção, como se eu já a esperasse e não soubesse.
Eu não quero estragar o casamento com o Filipe, que também adoro e é lindo, isto é sobretudo para que se entenda como as pessoas dos discos podem ser uma família íntima, alguém de quem não abdicamos, como se nos servissem sopa e fruta, a palavra e o abraço de cada dia, alguém que inventa a “manhã bela” que independe dos temporais e se levanta no peito.
Sei bem que vamos ter chuvas fortes este mês, mas já só penso em que faça verão e eu vá de carro a bolinar pela estrada, janelas abertas e o som no máximo. A música da Márcia sempre me dá a vontade de ir a algum lado. Deve ser porque se sublinha depois a urgência tão feliz de regressar a casa. Ter alguém para quem regressar. Ser de alguém e haver entendido que ainda somos os felizes que podem amar.
Estou apaixonado pela lentidão. Contra a pressa das cidades, do frenesi da informação, contra a espera que nos fazem para o tanto lúdico da vida, eu quero ouvir vinte vezes a mesma canção, “só tendo a paz do sono”, só tendo por destino o encontro de mim mesmo e dos que me amam. Acordar sempre diante dos que me amam. Acordar sempre diante do que me acalma e respeita.
O autor escreve de acordo com a anterior ortografia