"Cidadania Impura" é um espaço de opinião semanal assinado pelo escritor Valter Hugo Mãe
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O Miguel Gonçalves Mendes é todo aos saltinhos como as crianças e eu julgo que isso nunca lhe vai passar. Está sempre zangado comigo, também julgo que isso nunca lhe vai passar. Eu não acredito que ele seja carente, penso mais que é feito de sonho e os sonhos são todos em fuga. Por vezes, é uma porcaria quando sabemos sonhar. Ficamos à mercê da ansiedade, à mercê do que vemos por dentro, mais do que por quanto existe evidente diante de nós. O Miguel é absolutamente escravizado por sua vontade de maravilha, que se forma tão límpida em seu pensamento, custa que seja necessário demorar, lutar tanto para que aconteça.
Eu conheço pouca gente como o Miguel. Aliás. Ninguém. Não conheço ninguém assim. Entre ser tão sonhador e concretizador. Tudo nele é urgência de mudar o Mundo. Tem mais ganas de salvar os povos do que aquilo que se vê dos grandes estadistas. O Miguel devia ser ministro de alguma coisa ou presidente e mandar fazer coisas, porque só a mandar já seria mais trabalho do que se vê nos governos de hoje, onde tudo pasma com saudades de ditaduras e paizinhos severos. O Miguel não é severo. É à pressa. É diferente.
Eu sei por que razão o Miguel está sempre zangado comigo, mas não consigo mudar nada. Estou entristecido pela vida e até as coisas boas me demoram a fazer efeito. Tudo quanto é bom parece operar como a medicação: quinze dias depois é quando se nota. E eu estou com semanas de demora para a vida. Fiquei muito lento, pode ter sido da pandemia ou da idade, ou até de me pôr esperto e querer cansar menos. O certo é que estou muito incapaz de reagir como antes e venho dos pensamentos como do fundo de um poço. Gosto de vir, mas não tenho como ser mais rápido. Pior. Fico mais lento e talvez queira ser ainda mais lento para pensar que vou morrer daqui a muito, muito tempo. Não agora.
Os meus sobrinhos foram todos aos saltinhos em pequenos. Tenho tantas saudades das nossas crianças e de como avidamente ocupavam tudo. Também faziam sonhos. Penso agora que a falta que me faz o Miguel tem que ver com o milagre de ainda haver alguém que acredite que alguma coisa vale a pena. O senhor realizador de cinema, aos saltinhos, prova que é esse raro humano que acredita que alguma coisa ainda vale a pena. Não há preço para um adulto assim.