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É no Parque Eduardo VII, enfeitado pelas copas das mais belas árvores que também são um postal de Lisboa, que se instala a Feira do Livro há quase cem anos, para deleite dos seus habitantes. O número de visitantes cresce todos os anos e a afluência continua a ser condicionada pelas pontes, uma das grandes obsessões dos portugueses, que aproveitam feriados e dias santos para dar uma escapadela. Segundo dados da APEL - Associação Portuguesa de Editores e Livreiros, em 2024 atingiu o limite máximo de 350 pavilhões e a marca de um milhão de visitantes. Pelo andar da carruagem, este ano o mesmo número será atingido, ou mesmo ultrapassado.
Sempre adorei a feira, onde me habituei a ir desde criança pela mão dos meus pais e a partir da adolescência por minha conta, pelo menos duas vezes por edição, porque os livros pesam e é impossível apanhar todas as oportunidades em apenas uma ronda. Nas duas últimas décadas, acabo por ir três ou quatro, para dar autógrafos e conversar com os meus leitores, o que, a cada ano que passa, se torna mais saboroso. Quase todos os escritores que conheço gostam destes dias de confusão e de filas, porque as feiras, tal como as palestras ou conversas em bibliotecas municipais por esse país fora que faço sempre que posso, são um momento único de partilha com quem nos lê e também com outros escritores.
Todos temos alguns leitores que aparecem todos os anos, cujos filhos vimos crescer, ou que trazem parte da obra para ser autografada, e que se sentam na cadeira ao nosso lado e conversam connosco sobre as suas leituras. Desenganem-se aqueles que pensam que estamos lá por obrigação profissional e que o fazemos por frete. É exatamente o oposto. Em tempos como os de agora que tanto se fala em bolhas, a bolha da política, a bolha da esquerda, a bolha dos descontentes, as pessoas tendem a esquecer-se que o bicho escritor vive fechado na sua bolha, condenado ao isolamento para conseguir trabalhar. Nem sempre é fácil, mas não há outra forma.
Nós tratamos o silêncio por tu e aprendemos a dobrar a solidão como quem faz vergar o ferro a quente. Escrever é maravilhoso e belo, desde que a cabeça esteja em ordem e o coração em desordem, mas requer resistência e espírito de sacrifício. Todos os dias são diferentes, cada hora é um desafio. Às vezes conseguimos escrever durante vários dias seguidos e, quando tudo parece correr de feição, bloqueamos na semana seguinte e lá fica o manuscrito encalhado em terra de ninguém.
As feiras são um oásis para quem vive a esmiuçar a realidade e a questionar-se a si mesmo, numa luta interna permanente que não nos deixa sossegados. Ser poeta é ser mais alto, mas ser escritor é ter a capacidade de escrever aquilo que não somos capazes de dizer. Henry Miller disse que nenhum escritor é bom sem ter sofrido, e eu concordo. O sofrimento e a dúvida fazem parte do nosso combustível. Sentir que chegamos aos nossos leitores é a nossa glória. Hoje, como há 26 anos, vou lá estar, e que sorte tão grande é a minha em poder fazê-lo.