Corpo do artigo
Um dos grandes problemas da liberdade é acreditarmos que é um dado adquirido. E um dos problemas dos regimes ditatoriais, ou autocráticos, como agora se diz, é já não estarem vivos aqueles que foram por eles subjugados, ou ainda estando, já não constituírem massa crítica que lhes possa fazer frente. Em vários estados da América do Norte, a lista de livros banidos tem vindo a aumentar. Todos os anos o Office for Intellectual Freedom compila uma lista dos livros mais desafiantes, informando o público dos títulos censurados em bibliotecas e escolas. Esta associação reportou um aumento de 92% de títulos censurados no ano de 2024 em relação ao ano anterior. Estão em questão mais de quatro mil títulos que uma associação de pais, a direção de uma escola ou de uma biblioteca decidem banir. A saber: “1984” de Orwell, “O Diário de Anne Frank”, “Não matem a Cotovia” de Harper Lee, “A Cor Púrpura” de Alice Walker, ou ainda “Harry Potter e a Pedra Filosofal” de J.K. Rowling. Nem “As aventuras de Huckleberry Finn” de Mark Twain escapa ao espírito castrador e tacanho da América profunda, imbuída de preconceitos herdados do espartilho pseudovitoriano e banhada a ignorância desde a sua fundação.
A ideia que os Europeus têm da América está desfocada em breves estadias de turismo feérico e festivo em cidades como Nova Iorque, Chicago ou Los Angeles. Essa será a parte mais visível da América para quem a visita, mas não é representativa do continente que juntou 50 estados a tiro e a cavalo, habituado a comprar território com a mesma naturalidade com que na Europa compramos vestidos e sapatos. Embora, como tantos outros europeus, goste de ir a Nova Iorque com frequência e já me tenha aventurado em idílicos passeios pelo Yosemite Park, precisei de assistir às cinco temporadas da série “Yellowstone” para perceber que foi um país erguido a ferro e fogo, onde a lei do mais forte é dona e senhora. A bela América que idolatramos por causa da indústria de Hollywood e dos impressionantes arranha-céus que enfeitam qualquer cenário de grandeza, ousadia, beleza e modernismo, esconde a outra América dos subúrbios infinitos, dos pobres e dos imigrantes, do fentanil e da oxicodona. Esta é a verdadeira América do Norte, que elegeu Trump, porque acredita que é possível recuperar os ideais da MAGA, Make American Great Again. Um território deserto, conquistado a cavalo e a carroça, onde, para se fundar uma cidade, bastava uma rua com casas de um lado e de outro, um saloon e um xerife sempre armado até aos dentes. Correndo o risco de estar a caricaturar um país que trouxe à literatura tantos e tão importantes génios como Steinbeck, Faulkner, Below e Dylan, o crescente movimento para banir a boa literatura das escolas e das bibliotecas não me surpreende. A moral, e quem a usa e dela abusa para tentar calar os espíritos livres, é um sintoma de falta de cultura, já que o respeito pelas ideias do próximo não se aprende a pontapé e grito, nem se interioriza em uma ou duas gerações.
Aqui na Europa, com a guerra por perto, é impensável proibir livros, mas não podemos baixar a guarda, porque a febre autocrática seduz com espantosa facilidade cabeças que não conseguem pensar por si mesmas.