Mundi, o caldeirão cultural da Casa da Música para integrar imigrantes
É um projeto de criação musical, de celebração da diversidade cultural. Letras e melodias são construídas de raiz a partir de uma nota ou de uma palavra numa sala que é ponto de encontro de gente de geografias diversas. É um processo coletivo, de partilha e de integração, que acontece na Casa da Música, no Porto.
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Jeane Oliveira e Sónia Barros chegam juntas, atravessam o café, viram à direita, pedem acesso ao elevador, descem ao piso-2 da Casa da Música. São quase nove da noite, o sol já se pôs, é início de semana. As duas senhoras de cabelos brancos, irmãs por afinidade como se apresentam, são brasileiras, de São Paulo, moram no Porto há um ano. Há um mês que cantam no Mundi, projeto de criação musical que condensa um dos seus propósitos na frase: “música para todos, por todos”. “Esta integração entre diversas origens é muito boa”, analisa Jeane, de 73 anos. Sónia tem 75. Estão reformadas, eram advogadas no Brasil.
Às segundas-feiras, por volta das nove da noite, o Mundi junta imigrantes dos quatro cantos do Mundo, numa sala de ensaios da Casa da Música, venham de onde vierem, sejam músicos ou não, a experiência musical não é importante. O ensaio está prestes a arrancar. Cadeiras numa roda, instrumentos ao redor, microfones ao alto. Os exercícios começam. Olhar para o chão, olhar para cima, trocar de lugar com quem o olhar se cruza. Anca para um lado, um saltinho, imitar um peixe e uma espada, uma montanha e dizer russa com as mãos no ar, imitar um tubarão com o corpo. Fazem-se percussões com os pés como passos de dança, usa-se o corpo para marcar ritmos, batem-se palmas, os membros em movimento, acrescenta-se uma canção com letra simples, em inglês, “vamos cantar juntos”, repete-se três vezes, e continua-se “não amanhã, vamos cantar juntos agora”. Os músicos Alexandre Curopos e Gutti Mendes, formadores da Casa da Música, orientam as sessões do Mundi.
Fazem-se duas rodas, corpos e vozes repetem a coreografia musical em momentos diferentes que se sobrepõem e combinam em sintonia. O ambiente é descontraído, sonoro, divertido. De comunhão e de partilha. Jeane Oliveira lembra-se da primeira sessão em que participou, há um mês. “Fizeram grupos de quatro pessoas, no meu, falavam todos inglês, só eu é que falava português. Tínhamos de criar uma melodia com uma palavra e deu certo e foi muito bom.” Sónia Barros aprecia esses momentos. “É esta maravilha, gosto de cantar, sempre gostei. Sabe como é, brasileiro gosta.” Veio de São Paulo para viver com o filho, depois de ficar viúva do marido português. “Fui muito bem recebida, os portugueses me tratam muito bem, me deram uma grande força.”
O piano que está no canto da sala é levado para o meio da roda de cadeiras. Alexandre Curopos dá as primeiras notas nas teclas, Gutti Mendes ocupa a posição ao piano, juntam-se os dedos das mãos um a um, enquanto se canta uma singela canção do sul de África. Alexandre Curopos explica que se trata de um ritual de passagem de criança para adulto, em que se pinta a cara com barro, vai-se ao rio lavar, quando se volta à aldeia, deixa-se de ser criança, é-se adulto.
É a primeira vez que Maria Gabriela Mayz vem ao Mundi, é apresentada logo no início aos restantes participantes como Gabi. É venezuelana, deixou o país há sete anos, vive no Porto há seis, trabalha na AIMA – Agência para a Integração, Migrações e Asilo. No seu país, cantava e dava aulas de Educação Musical, falaram-lhe do Mundi e nem pensou duas vezes. “Estou aqui, sou cantora, cantar é uma necessidade de alma”, revela no intervalo da sessão da última segunda-feira, enquanto os participantes que tocam instrumentos vão improvisando ao jeito de uma “jam session” durante a pausa. “Este tipo de atividade eleva o nosso empenho para que a integração seja muito melhor e isso é incrível”, salienta. Dentro de minutos, Gabi estará a cantar junto ao microfone uma música feita e tocada em conjunto que fala do Carnaval que já passou.
Caldeirão cultural, inclusão social
O intervalo termina, há uma música para cantar e para tocar, na roda estão vários instrumentos de percussão, congas, batuques, uma caixa de ritmo, bombos, pandeiretas, alguns sopros. O piano volta para o canto, à sua frente estão os baixos e as guitarras. Tim Lightfoot toca baixo, é norte-americano, do Texas, diz que pediu nacionalidade canadiana meio a brincar, meio sério, vive há dois anos no Porto. “A música não conhece barreiras, não conhece fronteiras, a música é uma linguagem universal”, diz. É assíduo no Mundi, só faltou à primeira sessão, veio a todas as outras. Está reformado, era professor de Genética, e sempre gostou de música. Os ensaios sabem-lhe pela vida, o grupo é especial, gente que faz do Porto sua casa. “Tem sido fabuloso”, garante.
Jeane e Sónia juntam-se ao grupo que canta, posicionam-se numa das pontas, Gabi já lá está ao centro, Kirill está na bateria, vai marcando o ritmo, experimenta o que soa bem, segue algumas indicações. Kirill chegou ao Porto há um ano e quatro meses vindo de Moscovo, Rússia, à procura de uma cidade mais tranquila, menos cosmopolita, menos problemática, na esperança de melhores condições de vida. Toca bateria e outros instrumentos de percussão, está no Mundi desde fevereiro. “Preciso de expressar a minha energia e as minhas emoções através da música”, conta. Nota-se essa vontade, esse envolvimento, essa urgência. A música tem esse poder de juntar quem não se conhece e falar a mesma língua e Kirill confessa que precisa desses momentos de libertação, de sair do trabalho na construção civil e tocar.
Gabi sentiu que tinha de deixar o seu país. “É uma ditadura disfarçada de democracia”, comenta. O seu irmão veio antes, ela pouco depois, vai dizer-lhe para ele também vir ao Mundi, uma vez que toca guitarra. A integração social é um processo complexo, admite. “Os imigrantes, quando saem dos seus países, têm de se empenhar nessa integração. Há uma desconexão do que fazíamos antes, é difícil retomar.” O Mundi ajuda.
Aqui não se ensina a tocar ou a cantar, não é para isso que o projeto nasceu. “A ideia não é fazer música que já existe, é criar o nosso próprio som, o som do Mundi que parte de cada uma destas pessoas”, adianta Alexandre Curopos, cantor, músico, formador. O grupo é coeso, a criação é feita em conjunto. “O Mundi é um bocadinho estas pessoas que estão aqui e que trazem um bocadinho do mundo delas e formamos um mundo nosso. Cada um traz a sua língua, a sua cultura, a sua experiência, a sua bagagem, a sua música”, acrescenta o músico, que orienta a sessão em português e em inglês.
Gutti Mendes, também imigrante, brasileiro de Minas Gerais, no Porto há quase seis anos, faz parte da dupla de formadores do Mundi. Há coisas que lhe dão imensa alegria. “Ver tanta gente diferente junta, se dando bem e fazendo música, compartilhando experiências, isso é muito bom.” “É um planeta à parte mesmo, é uma catarse mesmo, e isso é uma coisa muito legal.” Há outros aspetos que o fazem feliz. A integração, a partilha, a comunhão. Todas as semanas vem alguém novo e é acolhido, abraçado, assegura Gutti. “O mundo está tão complicado, as coisas estão tão duras, tão fechadas, tão negativas, que ter um projeto destes que cruza palavras, que cruza caminhos, é quase um oásis”, observa, ao lembrar que a programação deste ano, da Casa da Música, tem como tema principal “Caminhos cruzados”.
O Mundi arrancou em janeiro deste ano e é um projeto do Serviço Educativo da Casa da Música. Todos são bem-vindos, inscreveram-se mais de 60 imigrantes, da Ucrânia, Brasil, Estados Unidos, Rússia, América Latina, Canadá, entre outras proveniências, o formulário está no site da Casa da Música. A qualidade artística e a inclusão social são dois grandes objetivos. “Podemos fazer uma espécie de caldeirão cultural, como o do Astérix, e sair dali uma poção mágica, um elixir para a vida destas pessoas”, sustenta Jorge Prendas, autor do projeto, coordenador do Serviço Educativo da Casa da Música.
Não há limites de idades, de geografias, todas as expressões são bem-vindas para um repertório distinto. Também não há prazo temporal. A 6 de julho, os imigrantes do Mundi integram o espetáculo Sonópolis, que fecha o Curso de Formadores de Animadores Musicais da Casa da Música. “Será o primeiro ato público do Mundi e queremos que o projeto tenha mais espaço de palco em nome próprio, no Serviço Educativo, já no próximo ano letivo”, assinala Jorge Prendas.
Já passa das dez e meia da noite, Jeane Oliveira está satisfeita com o que ali se passou. “Esta interação que fazemos de atividades físicas, atividades musicais, atividades culturais, é maravilhosa.” Alexandre Curopos confidencia, com a sala vazia, quando todos saíram, que houve gente que lhe pediu para vir mais cedo na próxima sessão para afinar melodias, tocar, conversar. É o poder da música a funcionar e a essência do Mundi a acontecer.