Cidadania Impura
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As famílias fazem-se de muito amuo e matéria sonsa. Por mais ágeis e cônscias, são todas erguidas num amor também com fricotes e hesitações. Fazemos tudo o que podemos, mas apresentamos contas e dividendos como se o reconhecimento contínuo fosse uma contingência de nosso puro sangue. Às vezes, com tanto trâmite e memória, tanta coisa que podemos negociar na prova do amor, é mais proficiente convocar um amigo do que um irmão. Os amigos podem ser colegas do trabalho que a vida dá, contratados pela cumplicidade que não necessita de tanta contabilidade.
Na família temos de ser propensos a uma relação de iguais, como se fôssemos todos privilegiados e prejudicados de igual modo. Entre amigos, os mundos distintos encontram-se. Privilégios e prejuízos são diferentes e não há sentido em esperar senão isso. Na amizade é mais fácil reconhecer a complementaridade. Os pontos comuns aceitam sem crise as lacunas e têm exactamente aí o sentido da maior entreajuda.
O Nhanho é o meu amigo das urgências. Quero dizer, é meu amigo e é o primeiro a chegar à urgência. Isso também me espanta, porque a sua alma é festiva mas distraída. Para reparar em alguma coisa é necessário que seja um avião, tenha cara de avião, balcão de companhia aérea, acumule milhas, diga Londres ou Tóquio, sirva comida em tabuleirinhos compartimentados e traga água em copos de papel. Tirando isto, tudo é possível que aconteça sem que dê conta. A menos que lhe digamos: olha, tens um jacaré a morder-te o rabo. Então, repara e pede: façam qualquer coisa, odeio répteis. Metem-me asco.
Eu tenho a ideia de que as pessoas distraídas não odeiam nada porque não reparam o suficiente. Talvez possam odiar o cancelamento dos voos, o preço dos voos, o dos hotéis de Londres, a injustiça de não se poder esticar as pernas em viagem. Por isso, o Nhanho para mim é um ser sem ódio e sem noção do ódio, porque mesmo o asco que sente pelos jacarés creio que vem de nunca ter conhecido um jacaré de verdade. Se houver uma pessoa benigna no Mundo, e não puder haver duas, tem de ser ele. Mesmo atrapalhado da distracção e a coleccionar aviões numa aplicação do telefone que eu juro que existe. Quando nos encontramos, é comum que “apanhe aviões que lhe faltam”, conceito que eu não domino.
No apagão eléctrico, o Nhanho foi ver a minha mãe e passear o Crisóstomo. Eu, debaixo dos lustres acesos do Palace Hotel de Poços de Caldas, no Brasil, sabia bem que a minha família haveria de amparar a minha mãe, mas também que ao meu amigo das urgências, mesmo sem que possamos falar, haveria de lhe ocorrer o socorro, para a certeza de que as pessoas estão bem. Como os amigos betos de Leça cujo carro é eléctrico e avesso a apagões.
*O autor escreve de acordo com a anterior ortografia