Cidadania Impura
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O Nuno quando cozinha medalhões de pescada estes transformam-se em miolo de caranguejo. Mistura com um molho de tomate que parece normal e sal rosa grosso. Depois, aquilo vai ao tacho e demora quase nada a milagrar em caranguejo. Não percebo nada de cozinha, sou perdido e mato a fome como um ignorante e até sempre em perigo. Mas sei bem de milagres, coisas impossíveis e maravilhas várias. Por isso, quando janto em casa do Nuno e de sua esposa, espanto.
Há uns meses, poucos, eu ia morrer com um ataque cardíaco por causa das apneias mais e mais graves. Certamente por vir de um ciclo de perdas irreparáveis e de uma ínfima esperança, não quis prestar atenção e ajeitei a minha vida para o fim. Não tenho muito medo de acabar. Tenho pena. Mas não quero ter medo. Só tenho do que me dói. Dores de cabeça, sobretudo. O Nuno cismou que me levava a um médico e que eu haveria de passar as noites de nariz numa máquina para garantir que respiro no sono, protegendo a cabeça e acalmando o coração que me galopava equestre no peito. Assim foi. O doutor João Almeida diagnosticou-me e pôs-me todo a caminho de volta à vida.
Estou tão melhor que me sinto apto para viajar e escrever mais um livro. Sinto que posso criar a legítima expectativa de acordar sem que me expluda a cabeça, sensação quotidiana, insistente, constante. Leio mais livros do que nunca, engordo só de felicidade, de tanto ar e tanta pressa de voltar a fazer tudo o que já não pensava poder fazer.
O Nuno, que tem uns olhos clarinhos como se fossem só de água, nem olha direito para a comida. Mistura o improvável e acredito que mude géneros de alimentos como homens se sentem mulheres ou mulheres se sentem homens. A pescada do Nuno sente-se caranguejo e eu já comi na sua casa pão com manteiga com alma de queijo da serra. Desconfio de tudo, mas por mais que preste atenção, não vejo trapaça nem engano. Já o vi a cozinhar sem mangas e nunca usou cartola. Não há como me iludir fácil. Sou esperto. Aquilo é mesmo uma ciência, limpa, honesta, saborosa.
Agora, que já não vou morrer de ataque cardíaco nem de coisa nenhuma, estou cheio de vontade de ler os clássicos intermináveis e de barafustar sem culpa. Quero só fazer algum bulício e puxar pelo verão que se vai aproximando. Adoraria que toda a gente, ao menos este ano, tivesse uma trégua. Uma generosidade da sorte, como se tudo virasse marisco à boca da nossa fome. Era tão importante que toda a gente fosse conhecer o Nuno. Era mesmo.
*O autor escreve de acordo com a anterior ortografia