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O Mundo já estava à espera, mas o Mundo não estava preparado. É sempre assim com a morte, à qual ninguém escapa. Muitas vezes me interrogo se o espírito, mais forte do que a matéria, escolhe o dia e a hora em que dela se separa. O Mundo precisava de ver o sumo pontífice no domingo de Páscoa, precisava de acreditar que o Papa de todos, todos, todos, ainda estava ainda entre nós.
Depois de uma semana de luto, o que mais se pode dizer desta personalidade única, original, afável e conciliadora? Francisco mudou a Igreja por dentro e reconquistou cristãos cansados da opulência e da imobilidade que a casa de Deus carrega. Foi o Papa da juventude, que viu nele um pai espiritual, um amigo cúmplice, um mentor que guia sem julgar, que ouve com o coração e que protege sem sufocar. Como qualquer argentino que se preze, gostava de dançar tango, adorava futebol e não perdia uma oportunidade de dar o ar da sua graça com observações que revelavam um fino e descomplexado sentido de humor. Abriu a Igreja para o Mundo e esteve sempre do lado dos mais fracos, dos explorados, dos oprimidos, das crianças, das mulheres e das vítimas. Nunca deixou de se manifestar contra todo e qualquer tipo de abuso, mesmo quando estes eram perpetrados por homens da Igreja.
Talvez um dos seus mais importantes legados tenha sido a capacidade de pôr a realidade à frente do pensamento. A clareza na expressão e a simplicidade com que sempre se apresentou desarmava tudo e todos. Preferiu viver na acolhedora Casa de Santa Marta do que no Palácio Apostólico porque dizia que precisava de ter pessoas por perto. De todos os comentários que ouvi ao longo da semana, fixei o de Paulo Rangel, ministro dos Negócios Estrangeiros, que o definiu como o profeta do exemplo. A sua dimensão humana foi a marca de água presente em todos os gestos e palavras. O seu espírito iluminado nunca se cansou de apelar ao consenso e ao entendimento entre os homens. Jesuíta, escolheu o nome do fundador da Ordem dos Franciscanos. Quando apelava ao perdão e à conciliação, tanto o fazia em relação às relações familiares como aos conflitos bélicos no Mundo, porque, para ele, a família era a escola da paz.
O que podemos fazer para que o seu gigantesco e precioso legado não se dissolva no tempo, em tempos tão conturbados em que vivemos, nos quais as forças populistas mascaradas de heróis de Pirro se tornaram em terríveis ameaças para Humanidade? Não basta passar a palavra, que é agora feita com a republicação de reels nas redes sociais, não basta repetir que era um homem superiormente bom e que aproximou os homens da Igreja. Cabe-nos aprofundar o nosso conhecimento e mergulhar no seu pensamento tão escorreito e justo, tentando deste modo alcançar o seu espírito. Na sua carta encíclica “Fratelli tutti” sobre a dimensão universal do amor fraterno na qual alerta para as sombras de um Mundo fechado, escreveu: “… o bem, como aliás o amor, a justiça e solidariedade não se alcançam duma vez para sempre”. Existe sempre um caminho, que todos podemos abraçar, numa prática humilde e consistente, em memória do Papa que abraçou o Mundo.