O consumo de alimentos picantes pode trazer mais impactos positivos do que negativos para a saúde, com efeitos anti-inflamatórios ou até antioxidantes. Mas, e há que sublinhar este mas, tudo depende da tolerância de cada um e das quantidades. A dose pode fazer o veneno.
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Não é para todos, ou se ama ou se odeia e há até quem reaja mal, com suores, corridas à casa de banho ou dor abdominal. Mas a sensação de que a boca está em fogo, de que a língua está a arder, quando não vem acompanhada de mais nenhum sintoma, pode não ser tão má para a saúde como se pensa. Na verdade, quando falamos de picantes, entramos num mundo vasto de alimentos, essencialmente condimentos, que começa nas malaguetas e vai até à pimenta. As malaguetas contêm uma substância chamada capsaicina, que é o que lhe dá a sua potência. Já a pimenta contém piperina. Alguns destes compostos têm investigação mais aprofundada, outros menos. Mas há uma certeza que serve de preâmbulo: tudo depende da tolerância de cada um e, claro, das quantidades.
Nesse capítulo, e olhando especificamente para a capsaicina, a substância mais estudada, as reações podem ser muito individuais, é certo, mas também tem tudo a ver com a dose. Trocando por miúdos, "quantidades muito elevadas podem ser bastante agressivas para o intestino, causando azia, desconforto e dor abdominal". José Camolas, nutricionista especialista em nutrição clínica, deixa desde já o aviso antes de avançar para os potenciais benefícios. "Por outro lado, em doses pequenas e moderadas, aquelas que são usadas habitualmente em termos gastronómicos, que são baixas, a capsaicina parece até ter um efeito positivo a nível gastrointestinal. Por exemplo, pode reduzir o risco de infeção por H. Pylori, uma bactéria que pode estar na origem de gastrites ou úlceras." A par disso, também parece ter um potencial efeito positivo na flora intestinal, o que contribui para o equilíbrio do trânsito intestinal e para a própria absorção de nutrientes.
Mas há mais. Embora não exista evidência robusta, alguns estudos epidemiológicos sugerem que o consumo moderado de alimentos picantes "parece estar associado a uma incidência menor de mortalidade e eventos cardiovasculares". Contudo, avisa o também professor da Faculdade de Medicina de Lisboa, há ressalvas a fazer. "Não existem propriamente ensaios clínicos e, muitas vezes, nestes estudos epidemiológicos, há fatores de confundimento. Não podemos fazer essa interpretação de causa-efeito, porque as populações que usam estas substâncias também podem usar menos sal, o que só por si está associado a menos eventos cardiovasculares." Ainda assim, segundo Lillian Barros, também nutricionista, os alimentos picantes parecem ter "um efeito vasodilatador, o que está associado a uma melhoria da circulação sanguínea".
Para lá dos potenciais efeitos gastrointestinais e cardiovasculares, há ainda outro ponto a favor: a aceleração do metabolismo. "Por isso é que há quem diga que emagrece, mas era preciso consumir muito, muito picante para nos ajudar a perder peso", refere Lillian Barros. Este efeito chama-se termogénico, na prática trata-se do aumento da temperatura corporal. "Nesse campo, até pode ser um ingrediente interessante para esta estação do ano. É uma forma de conseguirmos aquecer o organismo sem precisarmos de consumir mais calorias." Mas voltemos à questão do peso. Muito embora o argumento da aceleração do metabolismo seja falacioso, porque obrigaria a consumir grandes quantidades, a verdade é que o picante pode mesmo ser um truque para ajudar quem está em processo de emagrecimento. "Não por causa disso, mas porque ajuda a modular o apetite, ao promover maior saciedade. Só não se sabe se isso tem a ver com a sensação de ardor, que nos trava de continuar a comer e nos leva a comer mais devagar, ou se é mesmo um efeito da capsaicina. De qualquer forma, a nível comportamental, o efeito positivo é indiscutível", assegura Lillian Barros.
E não, os benefícios não se ficam por aqui. De acordo com a nutricionista Inês Pádua, "a evidência reporta, particularmente, efeitos anti-inflamatórios e antioxidantes decorrentes do consumo habitual de alimentos picantes", o que poderá significar menos risco de desenvolver "doenças cardíacas isquémicas ou doenças respiratórias". Além disso, aponta José Camolas, "há outro papel importante e clássico das especiarias em geral e dos picantes". "A sua utilização inicialmente surge pelo efeito potencialmente antibacteriano. Ou seja, de alguma forma, melhora a segurança sanitária dos alimentos, o que é uma mais-valia ancestral deste tipo de produtos."
É afrodisíaco?
No meio de tudo e de tanto, há uma dúvida, espécie de mito urbano, que levanta muita curiosidade. Será que o picante é mesmo afrodisíaco? A evidência é pouco robusta. "Há alguns estudos pequeninos e pouco significativos sobre a associação destes produtos a um melhor desempenho sexual e à promoção da ereção. Mas são muito pouco fiáveis", responde Camolas. "Não obstante o facto de poder melhorar a parte vascular e de também a nível neuronal, nas terminações nervosas que chegam à área genital, haver esse potencial de benefício. Mas é um potencial que não está de todo estabelecido."
Em suma, o consumo moderado de picante, "nas confeções gastronómicas habituais, e até pela substituição de outros aditivos, como o sal, parece ter mais efeitos benéficos do que prejudiciais". "Além disso, em combinação com outras substâncias, como alguns antioxidantes, que é o caso do licopeno do tomate ou da curcumina que está no caril e que vem da cúrcuma, parecem ser uma mais-valia." E embora haja mais investigação para a capsaicina, José Camolas diz que não é possível dizer taxativamente que um picante é melhor do que outro. "A piperina, que está presente na pimenta preta, também vai tendo alguma evidência científica, na modulação da inflamação, no funcionamento gastrointestinal."
No entanto, há alertas relevantes. Como diz Lillian Barros, "cada pessoa é uma pessoa". "Apesar de podermos enumerar uma série de benefícios, o picante pode sempre causar irritação gastrointestinal em pessoas mais sensíveis e com baixa tolerância, nomeadamente refluxo ou diarreias. Quando assim é, como é óbvio, convém evitar." E, claro, é desaconselhado a pessoas com patologias gastrointestinais. Inês Pádua dá alguns exemplos. "Gastrite, refluxo gastroesofágico, azia ou doença inflamatória intestinal. O mesmo se verifica para outras situações clínicas, como hemorroidas. Não temos evidência de que o picante cause estes problemas, mas pode agravar os sintomas de quem já apresenta estas condições de saúde."
Ao fim e ao cabo, voltamos ao princípio. "A dose faz o veneno. O picante traz benefícios e muitas vezes permite dar sabor à comida sem termos de recorrer ao sal. Mas é para consumir de forma moderada, equilibrada, de acordo com a sensibilidade de cada um. Há pessoas que podem fazer uma refeição todos os dias com picante, se o corpo permitir. E outras para quem uma refeição por dia pode ser demasiado. Qual é então a dose? É individual."
