A vida como ela é
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Quem não gosta de fazer anos? Há quem planeie o dia com meses de antecedência, desenhando rigorosamente um horário de realizações, há quem goste de fazer um grande festão, recheado de comes e de bebes, de amigos e de conhecidos, há quem prefira passar desapercebido, e depois existem pessoas como eu, que nunca sabem bem o que fazer. Se conseguir estar com os meus amores, com os meus amigos e com a minha família (os quais, em bom rigor, se confundem), já me dou por feliz.
Sempre acreditei que viveria até depois dos 90, mas não estou preparada para o número redondo que me espera. Três anos depois de ter completado 50, quando apanhei uma misteriosa virose numa viagem ao México, pedi à receção do hotel que chamasse um médico. Depois de ter sido vista pela doutora Gloria Gutierrez, que me receitou qualquer coisa que a memória apagou, fiquei com o seu cartão de visita entre os dedos onde dançava a seguinte mensagem: “atencíon especial a personas mayores”. Ao que parece, na América Latina, a partir dos 50, já ninguém é novo. Duas semanas depois, enquanto passeava de biquíni nas belas praias das Baías de Huatulco, fui tia-avó, função que desempenho desde então com grande alegria e algum garbo, nunca esquecendo que o cartão de visita e a fotografia do primeiro bebé na família duas gerações abaixo constituíram o primeiro embate com a minha idade cronológica, tão distante da idade que sinto ter e que aparento, graças à genética, a bons hábitos de sono, a gostar de ir ao ginásio e, acredito, à prática da meditação.
Faço minhas as palavras de Simone de Beauvoir: O tempo é irrealizável. Provisoriamente o tempo parou para mim, mas não ignoro as ameaças que o futuro encerra, como também não ignoro que é o meu passado que define a minha abertura para o futuro. O meu passado é a minha referência que me projeta e que devo ultrapassar. Ao passado, devo o meu saber, a minha ignorância, as minhas relações, a minha cultura e o meu corpo. Que espaço o meu passado deixa para a minha liberdade hoje? Não sou escrava dele. O que sempre quis foi comunicar da forma mais direta o sabor da minha vida. Vivi num mundo de homens, guardando o melhor da minha feminilidade. Não desejei nem desejo nada mais do que viver sem tempos mortos.
Não falo de velhice, porque não a sinto no corpo, nem no espírito, nem no coração. Bem, talvez no corpo um bocadinho, uma maleita persistente aqui e ali, dores nas articulações que anunciam a chuva, menos vontade de fazer as malas e de viajar do que há uma década e muito menos paciência para pessoas ou situações que não merecem o meu tempo. Abraço a longevidade, pensando em todos aqueles que não puderam vivê-la.
O sabor da minha vida será sempre doce e leve, sem azedumes nem amarguras.