A banda comemora 20 anos, vai lançar um single e um vinil duplo com 20 temas. Nena, Salsa e Marlon falam do processo criativo, da verdade das canções, do que encontram quando abrem o baú, de um autocarro de dois andares com mesa de póquer. A grande festa acontece no outono, no Coliseu do Porto.
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A conversa promete. Luísa Barbosa (Nena), Mário Brandão (Marlon) e João Salcedo (Salsa) encontram-se numa sala de ensaios dos Estúdios Rangel, no rés do chão de um edifício do Porto, onde gravaram coisas do último disco, segundas vozes, shakers, percussões, estruturas de músicas. Há um piano, uma bateria, um cabide com roupas, algumas fotografias antigas da banda que se deu a conhecer em 2005. São 20 anos de estrada, de concertos, de aventuras. De muitas coisas. De influências musicais dos Beatles, Queen, Dire Straits, Bruce Springsteen. De recordações dos primeiros concertos nas discotecas Pop e Via Rápida, no Porto. De como um grupo de amigos sem muitas pretensões deu início a um projeto que explodiu e se afirmou no panorama musical português.
“Aconteceu de tudo, concertos que acabaram por não acontecer, que foram desmarcados em cima do acontecimento”, recorda Nena, vocalista e veterinária. Músicos que partiram pés, articulações rompidas num polegar. Curiosamente, o mais irrequieto nunca se estatelou. “Eu que sou o que ando no palco aos saltos nunca caí”, conta Marlon, vocalista e designer gráfico. Houve de tudo um pouco. Concertos em discotecas sempre de olho nas guitarras e um piano que levou um banho de cerveja. Carregar instrumentos a furar pistas de dança com gente aos pulos. Longas viagens depois de espetáculos longe de casa. E dois autocarros.
Eram muitos na estrada, mais de 15, não compensava andar em carrinhas, por isso, decidiram alugar um autocarro antigo e sem uso da UCT - União de Transportes dos Carvalhos. Tiraram-se alguns assentos, puseram-se mesas. Depois surgiu a oportunidade de comprar um autocarro de dois andares de uma equipa de futebol do Rio Ave. A viatura foi totalmente transformada, forrada a papel de parede com fotografias da banda, uma mesa de póquer, cinco camas, sala com televisor com mesas que tinham as medidas exatas para encaixar latas de Coca-Cola, uma mini discoteca atrás. Viam concertos e filmes, jogavam cartas e playstation, apanhando o jeito para chutar para a direita quando o autocarro virava para a esquerda. São muitos quilómetros no corpo. A banda nasceu por acaso, brincadeira de amigos, batismo de fruto a puxar para a pirosice dos azeiteiros, sem altos voos no pensamento. Só que cresceu e ganhou estatura. Uma maquete chegou às mãos de Rui Veloso, que gostou da sonoridade e no seu estúdio caseiro nascia o primeiro álbum d’Os Azeitonas com produção de Luís Jardim.
O grupo passou pelas agruras do crescimento, pela eterna dúvida de acabar ou continuar, aquele impasse, aquele não ata nem desata. “Tinha sido feito todo o investimento possível e imaginário e não avançava”, salienta Nena. Até que descolou com a canção que depressa se tornou êxito “Anda comigo ver os aviões”. Nada seria igual e a banda estava preparada, tinha calo. “Quando os ‘aviões’ rebentaram, já tínhamos alguma tarimba e isso ajudou-nos, já estávamos preparados para palcos maiores. Se o primeiro single tivesse sido esse sucesso, estávamos lixados, íamos passar vergonhas em palco”, admite Marlon.
Houve de tudo e houve sempre liberdade para criar. “Nunca tivemos limitações”, garante Marlon. “Somos senhores de nós próprios, para o bem e para o mal”, acrescenta Salsa, vocalista, pianista, compositor, músico ligado a vários projetos. As ideias surgem, trocam-se opiniões, as canções vão sendo moldadas num processo partilhado, fluido, orgânico. Um flash, um acorde que vai por ali, uma melodia por aqui, uma letra que encaixa. “É preciso encontro para acontecer alguma coisa”, adianta Nena que escreveu a canção “Oito e meia”, a história de uma mulher a dias e de um guarda-noturno, ela a levantar-se e ele a deitar-se, para o álbum “Banda Sonora”. “Foi a única coisa que me saiu em cinco minutos”, revela.
Depois da saída de Miguel Araújo, em 2016, principal compositor, a banda continuou o seu caminho, o quarteto passou a trio. O processo criativo mudou naturalmente, a sonoridade não. “As pessoas achavam que íamos mudar o registo na totalidade e não, continua a ser quase a mesma coisa”, comenta Nena. O trabalho é afinado coletivamente e há vários discos para a posteridade. O primeiro registo “Um tanto ou quanto atarantado”, depois “Rádio alegria”, “Salão América”, “Em boa companhia eu vou”, CD e DVD gravados ao vivo, mais “AZ”, “Banda sonora” até ao último “Reconstrução”, gravado durante a pandemia, álbum eclético que lhes saiu do pelo, com humor e ironia à mistura.
Canções soltas antes de outro disco
O fascínio da música é difícil colocar em palavras. Salsa fala de encanto. “Se formos ao fundo, há uma espécie de magia, em explicar o que é a música: som a bater nos ouvidos e a dar emoções. Só essa parte é meio bizarro, meio único - os animais também o hão de sentir de maneira diferente. Chamamos a isto uma linguagem, ou seja, estamos a falar ou a transmitir alguma coisa que outra pessoa vai entender de uma maneira diferente, mas vai sentir que é comum, há uma comunhão do ouvinte - e nós somos o primeiro ouvinte - com uma coisa que não sabemos exatamente o que é, mas que respeitamos exatamente por causa disso. Acho tudo isto bem mágico.” Por vezes, há momentos de redescoberta. “Ao abrirmos o baú, começámos a olhar para trás e descobrimos não só sessões de gravações de músicas, como, às vezes, encontrámos um take diferente, uma outra versão, um pouco da verdade do que se passa. As pessoas só recebem o produto final, aquele que achamos que se adequa mais. No entanto, o trabalho está cheio de tentativas, versões alternativas, solos diferentes, uma versão alongada”, observa Salsa.
Ao primeiro minuto da madrugada de 12 de abril, próximo sábado, a banda coloca o seu novo single à disposição nas plataformas digitais. Música que fala dos 20 anos, canção crua e nostálgica, com videoclipe a acompanhar. Depois do verão, é lançado um vinil duplo com 20 temas, 20 anos 20 canções, edição limitada de 500 exemplares, um “best of”. A escolha das 20 cantigas foi tranquila. A 2 de outubro, o aniversário é comemorado no Coliseu do Porto com convidados que, por enquanto, não são revelados (embora haja um demasiado óbvio). “Será uma celebração, uma festa, vamos percorrer o alinhamento, todo o nosso catálogo, encaixar tudo, fazer uma história”, adianta Marlon. “Não vamos tocar mais ou menos o último álbum e dois ou três clássicos incontornáveis. Neste caso, vamos fazer o oposto. Vamos olhar o mais atrás possível e relembrar todos os passos que fizemos, há músicas que já não tocámos há anos”, informa Salsa, que revisita o passado. “Mudámos bastante do primeiro para o segundo álbum, já não tem a ver com aquilo que somos. O primeiro álbum, a que chamamos álbum zero, está num lugar esteticamente diferente.” Marlon prossegue: “É muito embrionário na nossa carreira, não estávamos à espera, não foi produzido por nós, estávamos muito verdes, foi um deslumbramento. Foi assim que começámos”. Começaram e fizeram um pouco de tudo com a excitação do que é novo, sem muito nervosismo antes das gravações, segundo Nena. “A parte da música embrionária que depois se transforma numa música construída com princípio, meio e fim, bem estruturada, é muito gira, é muito cómica. Entrar na produção e dizer e se puséssemos mais isto, e se tocássemos mais assim, e agora mais assado, tipo uma receita.” Os ingredientes juntam-se e algo nasce.
É tempo de abrir gavetas e arrumar a casa, dizem. “Descobrimos, há pouco tempo, que a maior parte dos nossos discos ou músicas não está nas plataformas digitais”, assinala Salsa. Uma editora antiga que, entretanto, se dissolveu, depois o digital chegou com toda a força, agora é preciso reorganizar o catálogo. Além disso, há algumas canções na gaveta, umas encostadas, outras que não entraram em discos, que vão ser lançadas nos meios digitais. “Ter um baú fechado não serve de nada”, considera Salsa. Não há pressa do futuro, há sempre um disco de originais na cabeça. O Brasil ainda não aconteceu, vontade antiga de Nena, cantar no Rio e em São Paulo.
Há uma premissa assente desde o início: enquanto fosse divertido, a banda continuaria. Os concertos levam as músicas para outros lugares, não gostam de despachar canções e fazer tudo na batata, sempre igual, tudo certinho. As afinações são feitas em palco, onde percebem o que funciona e o que não resulta.
“Nunca tocamos os aviões da mesma maneira”, diz Salsa que volta ao início e ao agora. “Fomos influenciados por outras bandas, por outros músicos. E, de repente, damos por ela e estamos a inspirar pessoas a fazerem a mesma coisa, a entrarem pelo mesmo caminho, a arriscarem, e isso é muito gratificante.” Vinte anos e um conselho de Salsa. “É melhor arriscar e falhar do que não arriscar nada.” Afinal de contas, são 20 anos de estrada.