Cidadania Impura
Corpo do artigo
O quarto 336 do Brasília Palace talvez nem seja o melhor do hotel, mas criou em mim a impressão de me oferecer o Paraíso varanda fora. Certamente pelo fim da tarde, o modo como o sol se deita nesta terra, a sua luz, ou por Oscar Niemeyer recortar o edifício para que ele monumentalize a árvore gigante que mora no largo chão diante do lago Paranoá. Não sei. Alçado no quarto 336 eu tive a convicção de chegar a um lugar que só poderia existir dentro de mim, bem dentro de meus sonhos.
É louco dizer-se que uma vista nos oferece um regresso à infância quando chegamos a uma casa que nunca habitámos num lugar por onde nunca passámos. Mas não é da infância como me aconteceu de que falo, é de algo imaginário que me apequenou para menino, fascinado a ver o Mundo como se ele pudesse começar inteiro, agora, a partir daqui, reeducado e perfeito. E não me senti sozinho. Não se nasce sozinho, e a própria casa é lugar de nascer. O primeiro pé na varanda e a árvore também é um edifício inacreditável. É uma só árvore, mas cujo diâmetro é o da multidão. Não sabemos estar sós diante dela. Parece um deus e o hotel inteiro, e Niemeyer, entendeu bem isso. A árvore é um deus que aqui maturou.
Havia um casal sentado num lanche igualzinho aos filmes. Eu senti que eram felizes, que nenhum escritor lhes inventaria o medo ou a angústia. Nenhum escritor teria coragem para pensar no que perdem até as pessoas que chegam a encontrar um lugar assim. Pensei em como Proust lhes destruiria os interiores. Burgueses lindos cheios de abismos, disfarçados em flor mas caducando de dúvidas e adiamentos. Eu, que amo Proust, quis que não existisse, para que aquele casal a lanchar pudesse salvar-se da literatura inteira e vencer.
Vasculhei o hotel como quem anda no próprio corpo de Oscar Niemeyer, e nunca vi hotel mais delicado. Era urgente deitar todas as cidades abaixo e refazer assim. A limpeza que se dispõe à luz, o corpo flutuante da casa que quer ser pulmão no ar livre de onde os pássaros não fugiram, de onde a mata não se afastou. O hotel vira bicho gentil da mata, da terra, um corpo longo e branco que poderia ser mais uma gameleira de marfim, o sono deitado de uma gameleira que calcificasse eterna como um espírito. Este hotel é o espírito puro de um hotel. Um anfitrião que magnifica o que já era magnífico.
*O autor escreve de acordo com a anterior ortografia