Acontece entre amigos e entre namorados, para saberem sempre onde o outro está, com base na ideia de que não têm nada a esconder. É o novo normal. Não há limites, estão permanentemente disponíveis uns para os outros, constantemente ligados. O conceito de privacidade perde-se e, claro, há riscos.
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Ana descobriu o fenómeno num acaso, é mãe de três filhos, foi a uma reunião na escola a propósito de um programa de saúde mental e a psicóloga que o estava a apresentar alertou os pais para a tendência. “Explicou que os miúdos hoje em dia partilham indefinidamente a sua localização com amigos e namorados. Para saberem permanentemente onde o outro está.” Ana achou aquilo estranhíssimo, absurdo até, e apressou-se a adivinhar que os filhos não o faziam. Não havia sentido nem lógica. Até que chegou a casa e decidiu comentar com o mais velho, de 17 anos. “Foi aí que ele me disse que também o faz, com amigos e com a namorada. Têm sempre a localização no telemóvel ligada uns para os outros. Se ele quiser saber se o amigo está em casa, basta ir ver.” Gerou-se uma discussão, Ana quis perceber porquê. “O que eles defendem é que não têm nada a esconder.”
Mas a mãe não se ficou, quis explicar ao filho que “não se trata de ter alguma coisa a esconder, que é uma questão de privacidade, de independência, de liberdade”. Ele não lhe deu ouvidos. “A adolescência é uma fase em que o grupo assume grande importância, mas a esta magnitude? Saber onde os outros estão a cada minuto, 24 horas por dia? E, da mesma forma, os outros saberem onde ele está? Ninguém pode estar sempre disponível para os outros, não é suposto. Parece um Big Brother. O que é que vai acontecer quando a namorada desligar a localização? Isto assusta-me”, confessa Ana. Uma coisa é certa, o fenómeno está generalizado, não se limita ao grupo de amigos do filho, “e os pais estão às escuras”. Mas não será apenas um choque geracional? “É possível que estejamos a dramatizar, mas a psicóloga dizia-me que eles até mostram os telemóveis às namoradas, para que possam ler todas as mensagens. Percebi claramente que o meu filho não percebe o conceito de privacidade. E parece-me que há um perigo claro de controlo, que até pode estar em lume brando para já, mas que está só à espera de entrar em ebulição.”
O tema não é nada estranho a Ana Pato, psicóloga que trabalha com crianças e adolescentes e que assiste a estes relatos no consultório. “Muitos jovens, hoje em dia, partilham a localização com os melhores amigos permanentemente. Há um lado em que esta partilha até é bastante útil, nomeadamente entre amigas mais ansiosas, porque o facto de alguém conseguir saber sempre onde estão lhes dá uma sensação de segurança. Mas também acontecem situações menos simpáticas, nomeadamente irem confirmar que o amigo está efetivamente onde disse que estava, e que não mentiu.” Na base de tudo, subscreve a psicóloga, está a tese de “que não há segredos, não há nada a esconder”. A tendência está muito ligada à noção de grupo, todos os elementos o fazem. “Eles nem precisam de telefonar para saber onde está o amigo. O que levanta muitas questões, porque nem sempre temos de estar disponíveis para o outro. E não temos de dizer sempre o que estamos a fazer.”
Ao mesmo tempo, sublinha Ana Pato, desligar a partilha da localização não é bem-visto, é algo problemático, “é quase como negar alguma coisa ao outro”. Aliás, Hugo Tavares, pediatra que se dedica à medicina do adolescente, diz que “há um código de conduta muito próprio entre os adolescentes, uma linguagem própria”. E dá outros exemplos: deixar de seguir no Instagram, não pôr like na foto, não reagir à story ou demorar muito tempo a responder a uma mensagem, são tudo sinais que se enviam. A propósito disso, Ana Isabel Lage Ferreira, psicóloga da educação, partilha um caso que lhe apareceu em consulta. “A jovem dizia-me que partilha a localização com as amigas, que é uma coisa natural no grupo, nem sequer há grande reflexão por parte delas sobre o assunto. Acontece que se chateou com uma amiga e queria deixar de partilhar a localização com ela, mas isso era difícil, porque seria uma afirmação declarada de rompimento.”
Segundo Ana Isabel, a ideia da partilha total, para quem já nasceu a partilhar nas redes sociais tudo o que faz ao segundo – com quem está, onde está, o que está a comer – está muito presente nesta geração de adolescentes. A partilha da localização é só mais uma camada. “É como se a vida estivesse externalizada, nem sequer têm de decidir sobre isso, já está decidido que assim é, que tudo é partilhável. Se perguntarmos porque é que partilham a localização, nem sabem bem justificar, é porque toda a gente o faz.” Paralelamente, de acordo com Ana Pato, há uma necessidade constante de estar presente e em contacto. “Há miúdos que ligam para cima de cinco vezes até o outro atender. Demorar vinte minutos a responder a uma mensagem para eles é uma eternidade. Há esta ideia de que têm de estar sempre todos disponíveis, o telemóvel é uma extensão deles. É impensável ficarem sem bateria, por exemplo.”
Para a psicóloga, mais até do que a privacidade, o que está em causa é a dificuldade em estarem sozinhos. “Estão sempre a falar com alguém. Mesmo quando vão na rua, vão com os fones em chamada. Não existe o espaço pessoal, até quando estão em casa, estão a partilhar a localização, o que significa que algum amigo pode ir ter com eles, não há barreiras.”
O namoro e os riscos
A questão adensa-se quando a partilha acontece no namoro, com mais riscos a saltar à vista e um movimento conservador a emergir. “Há um retrocesso nesta geração. Uma frase que ouço muito é ‘não é que desconfie dele, mas fico mais descansada se vir o telefone dele e as mensagens’. É óbvio que é uma invasão de privacidade e o problema é que isto já é um dado adquirido. Muitas adolescentes dizem-me ‘então, mas se não mostrar é porque tenho algo a esconder’ ou ‘se não partilho a minha localização é porque estou a esconder alguma coisa’”, conta Ana Pato.
O pediatra Hugo Tavares chama-lhe “total disclosure”. E acrescenta que “há uma alienação completa da identidade e da privacidade, sem que os jovens percebam a invasão que isso representa, porque este é o normal para eles”. Entre namorados, partilhar a localização, saber sempre onde o outro anda, não é mais do que “um sinal de confiança plena, uma jura de amor, tal como ceder as passwords das redes sociais”. “Funciona muito na base de ‘tu controlas-me a mim e eu controlo-te a ti’. O estranho para eles é não partilhar.” Sendo certo que “quando se perde a linha que separa o que é normal ou não, há o risco de extravasar para outros comportamentos abusivos”.
Ana Isabel Lage Ferreira diz mesmo que a ausência da perceção de limites é o mais preocupante. “Se sempre foi assim, se ele sempre soube a minha localização, se sempre soube a minha password, então se continuar a invadir a minha vida, com pequenos cortes na minha autonomia, isso não me vai surpreender.” Mas a psicóloga olha sobretudo para a questão da identidade, da personalidade. “Se os limites daquilo que sou não são demarcados dos limites do que o outro é, deixamos de ser dois seres individuais e há um risco de perda de identidade.” Numa perspetiva mais abrangente, para lá das relações amorosas, Ana Isabel sustenta que “há uma tendência para haver menos espaço para a criação de identidade”. “Como pais, estamos a criar menos espaços de decisão, decidimos quase tudo pelos miúdos e depois eles não trabalham esse músculo que ajuda no processo de construção de identidade. Chegados à adolescência, não são capazes de refletir por que motivo escolhem uma coisa e não outra, absorvem facilmente as decisões que são tomadas pelo grupo sem questionar, não há sentido crítico.”
Hugo Tavares segue-lhe o raciocínio e alerta que “se não se trabalhar desde cedo o respeito pela autonomia e pela individualidade, isso vai moldar tudo o que serão os relacionamentos pessoais no futuro, amorosos ou outros”. Mas “nestas idades há uma imaturidade grande, os adolescentes não estão preparados para abdicar da ânsia de pertença”.