"Cidadania Impura" é um espaço de opinião semanal assinado pelo escritor Valter Hugo Mãe.
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A Paula já nem fica zangada que as cadelitas prefiram o Cláudio, porque ele tem alguma coisa com os bichos que não se explica, mas eu acho que também se justifica por as cadelitas a verem como essas figuras que sustentam o mundo, iguais às mães. Algumas pessoas são sempre mães, mesmo sem filhos, porque o jeito que têm é cuidador, consciente. As cadelitas, na folia pelo Cláudio, julgo que têm o canto do olho ocupado com a mulher de quem esperam todas as soluções. Se houvessem de falar, diriam que as soluções são da Paula, com a mesma naturalidade com que ela entregaria maçãs se fosse uma macieira.
A Paula é mais nova do que eu e mais nova do que tantos dos nossos amigos, mas é a que mais segura os fios conectores, essas invisíveis razões para que nos encontremos todos, para que saibamos do que vai acontecendo, para que tenhamos sempre notícia de como andam amores e dinheiros, saúde e trabalho. A amizade significa não fugirmos. Ficar à distância sem fugir. Quero dizer, deixar saber que um sinal nos reúne a todos com urgência. A Paula, invariavelmente, cria o alerta. Normalmente, com subtileza. Basta que inventemos um jantar e nos olhemos uns aos outros. Sabemos quem anda a dormir no sofá, quem não anda a dormir de todo, quem pagou a mais ou recebeu a menos, quem já está fartinho de trabalhar ou de lhe dar fanico pelas costas, pela menopausa ou pelas dores de cabeça.
Adoro saladas que misturem alface com abacate, romãs, queijo feta, mirtilos. Adoro que as comidas tenham cores e sejam bonitinhas como se apanhadas no jardim. A Paula e o Cláudio cozinham muito assim. Enquanto nos servimos disto e daquilo somos iguais a crianças a brincar, porque de verdade tudo parece encantado, tirado de um livro ilustrado, de uma história bonita que nos queiram contar. E as cadelitas pedincham com sua ternura quase insuportável, e observam-nos. Somos gigantes sortudos aos seus olhos. E eu sinto que, àquela mesa, somos sortudos. Mesmo que pequenos e, por vezes, aflitos, ali temos parte de nossa maior sorte.
Nunca consigo refilar com a Paula. Ela não faz nada que me enerve e eu, agora de velho, enervo-me com tudo. Gosto mais dela por isso. Não por ser tudo imaculado no seu, ou no nosso, mundo, mas por haver um equilíbrio tão bonito que permita o tempo maturar tudo como numa melhor família. O tempo faz família. É mais bonito do que a vista dos Açores, do que os versos de Manoel de Barros, do que as primaveras todas, as dos calendários e as de Botticelli ou Vivaldi.