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Talvez tenha sido um estagiário. Acontece. Tenho um amigo que chegou a vice-presidente global de uma grande marca do Silicon Valley depois de, nos anos 1990, acabado de chegar à América com o liceu por concluir, subverter por completo os procedimentos de venda de um calhamaço comercial, já não me lembro se um catálogo de camiões se as próprias Páginas Amarelas - tudo através de um aparelho de fax com que primeiro deu milhares em prejuízos à empresa e depois deu milhões em lucros. Não é impossível que tenhamos encontrado novo maverick.
Mas releio aquela frase, "É com muito gosto que partilho o novo catálogo da" marca fulana de tal, "a nossa marca Holandesa que é a perdição das crianças", e volto a inquietar-me. A inteligência artificial lê os meus emails, sabe que eu tenho uma criança. Mais ainda: sabe que eu tenho uma livraria onde, além de muitos livros, se vendem outros artigos de criança. Mas, mesmo que a publicidade se tenha dirigido ao empresário, e não ao pai, o cinismo continua a perturbar-me. Quando foi que nós começámos a comprar e a vender a perdição das crianças com este desbragamento?
A perdição das crianças está aí à vista. Nos tablets postos em cima da mesa durante a refeição, para o fedelho calar a boca. Nos milhões de brinquedos arrumados em caixas na sala de estar, impedindo-o de concentrar-se num que seja. No modo como ele não quer, não quer, não quer - não quer comer, não quer falar, não quer dar um beijinho ao tio, não quer brincar com a outra criança que acaba de chegar. Nisso e em tanto mais. Agora estou atento a essas coisas: a perdição das crianças está por todo o lado. O que eu não sabia era que tinha sido construída assim, com esta deliberação.
Foi programática, a comercialização da perdição das crianças. Não foi um efeito colateral de uma montanha-russa mercantil da qual não tenhamos conseguido sair: foi construída de modo premeditado, na consciência de que a incúria, a culpa e a incultura podiam transformar as crianças nos supremos consumidores. Como transformaram, para gáudio transitório do mercado e infortúnio da espécie para várias gerações. Ou será que estes adultos imberbes que já nos rodeiam, incapazes de ler um capítulo de um livro até ao fim, incapazes de apertar um parafuso com uma chave de fendas, incapazes de fintar um nervo que lhes apareça no bifinho, não são, eles próprios, resultado de modelos mais ou menos primários deste vórtice?
A perdição das crianças. Ora aí está algo de que eu podia envergonhar-me enquanto pequeníssimo empresário, se não enquanto velhíssimo pai. E que provavelmente me destruirá se insistir em rejeitá-la - coisa que, provavelmente, nem sequer estou a conseguir.
