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A poupança, talvez já não lha consiga ensinar. Posso tentar a moderação, que ainda fui a tempo de a aprender. Mas, em geral, tive demasiada sorte para aprender a renúncia. Não cheguei a transformá-la num gosto. E agora também já não vale a pena tentar ser aquilo que não sou, porque nestas coisas a mentira cheira-se à distância e o moralismo é sempre o pior de tudo.
Salva-o ser filho da Marta também. Desse ponto de vista, talvez todas as crianças devessem ser filhas de alguém dos anos 1990 e de outrem dos anos 2010 ao mesmo tempo. Nascido pobre, pude sempre escolher entre resolver o problema do lado da receita ou do lado da despesa. Escolhi a receita, claro. Durante mais de 20 anos, vivi com gosto – e com certo requinte, acho – sob o lema “chapa ganha, chapa gasta”, desde logo porque havia sempre onde ganhar a chapa seguinte.
Em meados dos anos 90, os que nos formaram, havia tanto dinheiro em Portugal que uma pessoa despedia-se num sítio e arranjava trabalho na porta ao lado. A comunicação social, em particular, vivia na abundância. Quase todos os jornalistas, as mais das vezes o género de chico-esperto que só se consegue ser com o abandono precoce da faculdade, viviam melhor do que os colegas, as namoradas e até os pais dos colegas e namoradas. E eu era jornalista.
A Marta foi sempre todo o contrário. Nascida muito menos pobre do que eu, chegou a Lisboa quando já nem ser inteligente, culta e sociável a podia salvar. Fez uma licenciatura brilhante, um mestrado brilhante, artigos e demais propostas de entendimento do mundo e da literatura – sobretudo da literatura, sobre que sabe tão mais do que o marido – tão brilhantes como eles. Mas nunca deixou o velhíssimo apartamento arrendado há décadas pela família, onde entretanto viveu com todos os primos à vez.
Muita sorte teve ela. Sorte e mérito. Traduzia, revia, dava aulas, trabalhava em livrarias – nunca parava. Entretanto, guiava um Smart e de vez em quando ainda ia com uma amiga ou o namorado da juventude a uma capital europeia. Quantos outros conseguiam fazê-lo com o seu dinheiro, mesmo em regime low-cost?
Tenho muita admiração por ela. E também me pesa o coração sempre que penso nela em Lisboa, sem dinheiro, a gozar a vida com uma parcimónia com que ninguém devia ter de fazê-lo aos 25 anos. Todos os dias, quando nos vejo assumir naturalmente essa dicotomia na livraria – ela pela poupança e as boas contas, eu pelo investimento e deus-proverá –, penso nisso.
Mas, ao mesmo tempo, será ela a ensinar o mais importante de tudo ao Artur. Espera-o a escassez, não obstante tudo o que nos empenhemos (nós e ele próprio). A maior injustiça de todas é esta: termos sido fracos e cobardes o suficiente para agora não conseguirmos entregar melhor mundo aos nossos filhos.