A vida como ela é
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Sejam bem-vindos ao Realismo Mágico durante a campanha eleitoral. Para quem cresceu na década de 1980 e sempre gostou de ler este conceito é familiar. Trata-se do estilo literário cujo expoente máximo foi Gabriel García Márquez, vencedor do Prémio Nobel em 1982. O Realismo Mágico assenta numa estética narrativa que incorpora o insólito, o mítico e o sobrenatural como partes constitutivas da realidade. Não a distorce, apenas a reconfigura a partir dos seus próprios materiais. A linearidade temporal, a objetividade histórica e a transparência causal são postas em questão através de conceitos ancestrais enraizados no inconsciente coletivo de um povo.
Em Portugal, os fantasmas políticos e sociais que se foram cristalizando ao longo da História deram origem a série de ideias feitas que continuam a pairar como falsas verdades. Exemplo: foi o Governo de Passos Coelho o culpado pela troika, o que não é verdade porque a troika foi resultado do Governo PS. Este é apenas um entre vários factos que demonstram como uma mentira repetida ao longo de muitos anos pode prevalecer sobre a verdade. Outro traço do nosso inconsciente coletivo é o Sebastianismo, que se revê em delírios ardentes em relação ao hipotético regresso de Passos Coelho, qual Encoberto a sair do nevoeiro, para “salvar Portugal”, curiosamente a mesma pessoa que terá alegadamente lesado o país com a implementação da troika. Na mesma linha de pensamento algo lírico e ingénuo, enquadra-se o endeusamento do almirante Gouveia e Melo que, segundo a vox populi, vai meter ordem nisto. Portugal rege-se por um regime semipresidencialista com forte peso parlamentar. No entanto, parte da população acredita que ainda assim, um militar que organizou a vacinação durante pandemia, terá mais pulso do que qualquer político de carreira para o cargo de presidente da República.
Será que, depois de 50 anos de democracia, Portugal ainda se deixa encantar com a ideia de um líder com boa figura e traços de autoritarismo que, infelizmente, não é possível dissociar de Salazar, outro mito incontornável do realismo mágico português? Seremos um país tão perdido no tempo e tão desfasado da realidade como a aldeia de Macondo? Não me parece. Não acredito que iremos permanecer reféns do discurso da Esquerda que se habituou a falar para a Direita num tom de convicto moralismo, atirando para o outro lado da trincheira problemas estruturais criados durante o período da sua governação. Nem tampouco enfeitiçados com o líder da extrema-direita que se apresenta descaradamente como o grande salvador da pátria e veladamente como o quarto pastorinho. Temos uma tradição ancestral de crenças e de milagres, mas também somos um país que soube modernizar-se, constituído por cidadãos que gostam de pensar pela sua própria cabeça e que, apesar do folclore instalado nos debates políticos, nos discursos de campanha e nos comentadores que acham que podem dizer tudo o que lhes passa pela cabeça, conseguem distinguir o real do imaginário, os factos das insinuações, o trigo do joio.
Uma coisa me parece certa, “Crónica de uma morte anunciada” poderá ser um bom título para retratar a Esquerda portuguesa depois das eleições a 18 de maio.