Foi ao volante de "Top Gear" que Richard Hammond se tornou conhecido à escala planetária. Mas é muito mais do que isso. É jornalista, apresentador de televisão, pai e marido. Tem alma de engenheiro. E um grande apetite por aventuras.
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O menino que "inventou" o motor a vapor aos sete anos anda há três décadas a espalhar a palavra do motor de combustão e o evangelho da engenharia. Estreia-se a 15 de abril, às 22 horas, no canal Discovery, com "Richard Hammond"s Big", um programa dedicado à engenharia... em grande.
Mesmo que o nome não lhe seja familiar, provavelmente já tropeçou neste inglês de 50 anos numa das temporadas do êxito mundial "Top Gear" ou num dos programas que protagonizou, como "Brainiac" ou "Science of Stupid". Hoje, a sua casa é o "The Grand Tour", na Amazon, para onde se mudou depois da turbulenta saída da BBC do amigo e comparsa Jeremy Clarkson, com quem percorreu os cinco continentes a experimentar carros nos últimos 20 anos.
Mostrar grandes feitos da engenharia na televisão não é um conceito novo, mas o mais recente programa de Hammond, a estrear em abril, tem o cunho e o humor característico do inglês, enfatizando o "Big", o grande e desproporcional, o que nos faz sentir um pequeno inseto. "É sobre a diferença entre um avião grande ou um mesmo muito grande. Um edifício alto ou o mais alto do Mundo. E sobre o que isso significa para quem desenhou, projetou e construiu", resume, numa conversa com a "Notícias Magazine", em Londres, um dia após ter chegado de gravações numa plataforma petrolífera no Golfo do México.
E a apologia do que é grande continua, não fosse "Hamster" - nome carinhoso que lhe deu o mentor no jornalismo automóvel, Zog Ziegler - um aficionado da cultura americana, em que as carrinhas são quase camiões e um pequeno utilitário daria para transportar a família toda. "Construir em grande tem impacto, excita, enche-nos", sublinha com a emoção da criança de dez anos que diz ter escondida dentro de si, recordando a construção das pirâmides no Egito: "Faz-nos sentir pequenos pelos nossos próprios feitos".
Apesar de focado em estruturas que são produto de cálculos matemáticos e da física, o que Richard nos quer mostrar são as pessoas, os rostos e cérebros de quem teve a audácia de imaginar algo que vai para lá do que parece razoável. Entre os locais que visitou, e com os quais espera fascinar-nos, está o Burj Khalifa, o mais alto edifício do Mundo, 863 metros acima do Dubai. "Tem quase um quilómetro", exclama, para nos presentear com um dos factoides que espera que seja mote de conversa num qualquer café do Planeta. "Flutua na areia. Não tem rocha por baixo. Usa fricção entre os pilares e a areia" para se manter ereto. E o entusiasmo foi o mesmo a contar o reabastecimento em voo do maior avião militar de carga, o Lockheed C-5 Galaxy, ou a descrever a barragem Kölnbrein, na Áustria.
Paixão nasceu no berço
Mas de onde vem a paixão pela engenharia e pelos motores? Ele, que sempre foi jornalista e comunicador, parece ter sido destinado a gostar de carros. Tudo começou pela cidade natal, a potência industrial Birmingham, e pelo trabalho do avô materno, no gigante conglomerado automóvel britânico British Leyland. "O meu avô construía carroçarias. [Era] uma fábrica linda e aqueles eram os tempos em que se construía um chassis de metal com uma estrutura de madeira por cima. Estava-me no sangue." Mais: a avó trabalhava na Morris e o avô paterno ensinava militares polacos a conduzir durante a II Guerra. Não havia mesmo como escapar.
Inevitavelmente, a curiosidade de criança levava-o a querer saber mais. Os brinquedos eram destruídos para saber como funcionavam - "era do pior", garante-nos - e quase sempre ficavam inutilizados, porque a reconstrução nunca corria como esperado.
Com um sorriso, lembra uma história ternurenta de "Rich", engenheiro de palmo e meio: "Com sete anos, conta-me o meu pai, inventei o motor a vapor. Devo ter visto algo na escola, desenhei um esquema e levei-lhe: "Se aqueceres a água e fizeres vapor, podes...". "Sim, Rich, é um motor a vapor"", respondeu Alan Hammond, para desilusão do petiz.
Este "love affair" com as máquinas é tão intenso que, depois de gravar um especial de "Top Gear" no Botsuana, teve de voltar a Inglaterra com "Oliver", o Opel Kadett que o fez atravessar o deserto de Kalahari, o delta do Okavango e chegar à Namíbia. "É aqui que o design e a engenharia podem tornar-se emocionais. Aquele carro foi desenhado com um propósito: ser simples e barato de usar. Mas passou a vida entre a África do Sul e o Botsuana e eu usei-o para propósitos muito diferentes daqueles com que foi imaginado. Fico com a sensação de que é corajoso. Parece." E hesita.
"Eu sei que não é", desabafa, como que a aceitar que há algo para lá do que seria socialmente aceitável nesta paixão. "É um conjunto de peças de metal, mas elas foram desenhadas e montadas por mentes humanas. São a continuação da mente humana. Ainda me sinto feliz sempre que entro no carro", diz, mesmo depois de ter conduzido quase tudo o que se pode imaginar. E Oliver já ganhou vida própria. O seu destino é pergunta recorrente na Internet e há até quem o tenha pedido emprestado para o dia do casamento.
"Top Gear" e... o ambiente?
O facto de não ter qualquer formação técnica em ciências ou engenharia não é um problema, antes pelo contrário. Sem uma reputação na área para manter, Hammond está a postos para fazer as "perguntas estúpidas" sobre como funcionam as coisas. "Se eu perceber, todos vão perceber." O conhecimento que tem chega para fazer algumas reparações nos carros durante as expedições dos programas como "The Grand Tour" ou "Top Gear". "Sou bastante capaz. Consigo soldar bem, nem sempre de forma brilhante", conta, esclarecendo que há sempre um engenheiro nas aventuras, porque o gosto não lhe dá a capacidade de fazer a manutenção dos até 26 carros (mais os três dos apresentadores) da caravana que acompanha os desafios mais complicados do trio May, Clarkson e Hammond.
Numa época em que o ambiente é tema central, alguém que se notabiliza em programas que glorificam os motores de combustão tem de ter algo a dizer, e Hammond volta a referir a engenharia para confirmar que partilha em parte da ideia de Clarkson sobre o tema: a ciência vai resolver o problema.
"É preciso uma mudança maior no nosso estilo de vida. É preguiçoso dizer que é apenas o carro. Os têxteis, por exemplo, têm uma pegada de carbono quatro vezes superior à dos transportes. É enorme." E se o futuro do carro é elétrico, Hammond está atento: chegou à entrevista com a "Notícias Magazine" num Mercedes híbrido e planeia, neste ano, comprar o superdesportivo elétrico Porsche Taycan. Já sobre o atual símbolo da luta contra as alterações climáticas, Greta Thunberg, nem uma palavra. Sorriu.
Nem tudo são rosas para alguém que já viu a vida a passar-lhe à frente dos olhos, num acidente a cerca de 500 quilómetros por hora, durante as gravações de "Top Gear", com um carro a jato preparado para bater recordes de velocidade. Foi em 2006, mas está presente no espírito de quem viu as imagens e do próprio, que ainda hoje tem dificuldade em falar daquele segundo em que tudo parecia perdido. Em 2017, houve nova visita ao hospital, com a perna esquerda desfeita, após um despiste ao volante de um desportivo elétrico, na Suíça.
"Não há píxeis mágicos na televisão que te protejam. Tens de ter consciência que continuas no mundo real", avisa Hammond a quem pensa que o ecrã é apenas glamour. "Um pneu rebenta a 514 quilómetros por hora e fico magoado no hospital por um longo período. Ou então estilhaço as minhas pernas numa montanha suíça." Por isso, a prudência é essencial, seja ao volante de um carro ou pendurado numa grua no porto de Roterdão, a ver o maior navio de contentores do Mundo.
Entre o risco e uma chávena de chá
Mais à frente na conversa, o tema do aventureirismo e do risco volta a surgir. O tom fica mais sério. Ele, melhor do que ninguém, sabe por que tormentas passou. Será um aventureiro que não avalia os riscos? "Não, não podes ser um "daredevil" a pilotar helicópteros [tem licença de voo e um helicóptero]. Eles não perdoam. Não sou irresponsável. Seria um desrespeito para a minha mulher e para as minhas filhas. Faço este trabalho para nos sustentar. Quero matar-me e deixá-las sem o papá? Não! De modo algum."
O que pensa a mulher, Mindy, deste trabalho? "Ela tem uma opinião sobre o tema." Negativa, pode imaginar-se. "Não quero telefonar, ou pior, não quero que alguém lhe telefone outra vez a dizer que estou no hospital e um bocado partido."
Certo é que até parece fácil quando o emblemático trio se junta no ecrã. Já se conhecem há tanto tempo que sabem como vão reagir e "isso é confortável", considera o apresentador cujo nome está marcado na história da televisão, ao lado dos de Jeremy Clarkson, o desbocado e sempre envolto em polémicas mestre de cerimónias de "Top Gear" e "The Grand Tour", e do - por vezes - ponderado James May.
No futuro, Hammond vê-se nos bastidores, a realizar ou idealizar novos programas, deixando que os mais novos brilhem, e ficando longe do bulício e do risco. Por enquanto, continua a atravessar a Colômbia num carro velho, a fazer o delta do Mekong, entre o Cambodja e o Vietname, numa lancha rápida ou a precisar de montar um carro para sair de uma zona inóspita da Mongólia.
Com esta agitação, o que ainda excita Richard Hammond? A resposta sai rápida e com um sorriso maroto, que também fez o trio de assessores presentes na sala rir: "Um bom descanso sentado, uma bela chávena de chá. Gosto de me superar no trabalho. Tento fazer coisas difíceis e "Big" é um programa ambicioso. Mas também, quando estou em casa, vou dar uma corrida com o meu cão".
O ritmo frenético leva-o a não saber se alguma vez esteve no Porto. Em Portugal, sim. Há provas, porque o primeiro episódio de "The Grand Tour" passou pelo autódromo do Algarve. Mas no Porto? "Julgo que sim... Mas, por causa do meu ridículo trabalho, viajo tanto que nem me apercebo se já estive em algum lugar até lá voltar e reparar "Oh, já estive aqui". Vamos assumir que estive e que gostei." Mais uma faceta inseparável de quase tudo o que faz: o humor. Richard até já molhou o pé no stand up, em "Richard"s Hammonds Crash Course" ("nome engraçado", comenta), um programa em que experimentava diferentes profissões. Veredito: "Nunca mais vou fazer aquilo. É mesmo muito difícil, não o façam!". E a conversa foi interrompida por um alarme de incêndio. Era apenas um teste, mas serviu de mote para acelerar até ao final da entrevista.