Passaram quase 11 anos desde que a detenção de José Sócrates abalou o país. Agora, após incontáveis recursos, atrasos e juras de inocência, o julgamento tem finalmente data para começar. Só que uma decisão recente de uma juíza do Tribunal Central de Instrução Criminal pode voltar a adiar tudo.
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Eram quase 23 horas quando José Sócrates, primeiro-ministro de Portugal entre 2005 e 2011, aterrou no Aeroporto de Lisboa, vindo de Paris. Minutos depois, foi detido por agentes da PSP e da Autoridade Tributária. O caso abalou o país, dominou a atualidade, mereceu destaque na imprensa internacional. Aconteceu a 21 de novembro de 2014. Agora, o julgamento tem, por fim, dia para começar – 3 de julho, a próxima quinta-feira. Entre uma coisa e outra, passaram-se 3877 dias. Quase 11 anos. Anos marcados por atrasos e impasses, por recursos e incidentes processuais, por entrevistas e artigos de opinião em que o antigo primeiro-ministro jurou inocência e repetiu a tese da armação política. Ainda assim, prepara-se para ser julgado por seis crimes de fraude fiscal, 13 de branqueamento, três de corrupção. 22, ao todo. Mas voltemos ao princípio. Durante três dias, Sócrates é interrogado por Rosário Teixeira, procurador do Ministério Público (MP), e Carlos Alexandre, o “superjuiz” do Tribunal Central de Instrução Criminal. Ambos consideram que os indícios são suficientemente sólidos para decretar a prisão preventiva. A tese é a de que o antigo governante socialista foi corrompido enquanto era primeiro-ministro, para beneficiar o grupo Lena, e que depois terá usado as contas do amigo Carlos Santos Silva (também ligado ao grupo Lena) para movimentar milhões que na verdade lhe pertenciam. Sócrates segue para o Estabelecimento Prisional de Évora.
Ali, confinado a uma cela de quatro metros de comprimento por três de largura, passou 288 dias. Quase dez meses. Fazia jogging no recreio da cadeia, jogava futebol, frequentava um pequeno ginásio. Mas a maior parte do tempo era passada na cela, entre livros, séries e escritos. Enquanto esteve preso, Sócrates escreveu sete cartas. Em todas, os mesmos argumentos: a detenção para interrogatório foi um “abuso”, as acusações eram “absurdas, injustas e sem fundamento”, o caso tinha “contornos políticos”. Durante aqueles dez meses, a defesa do antigo primeiro-ministro apresentou vários pedidos de libertação imediata. Sem sucesso. Em junho de 2015, o MP chegou a propor-lhe aguardar julgamento em prisão domiciliária, com vigilância eletrónica. Sócrates recusou, argumentando que a medida tencionava “disfarçar o erro original”. Três meses depois, a 4 de setembro, é mesmo libertado para prisão domiciliária. Mas por pouco tempo. A 16 de outubro, o antigo governante é por fim libertado, ficando apenas impedido de se ausentar de Portugal e de contactar com outros arguidos. O inquérito, contudo, estaria longe de terminar.
A 30 de março de 2016, o então diretor do DCIAP, Amadeu Guerra, hoje procurador-geral da República, fixa 15 de setembro como data-limite para a conclusão do inquérito. Em vão. A 14 de setembro, a Procuradoria-Geral da República (PGR) informa que concedeu mais 180 dias para a realização de “diligências imprescindíveis”. O prazo passa a ser 17 de março. Entretanto, a defesa de Sócrates faz mira ao juiz Carlos Alexandre, tentando afastá-lo do processo. Em fevereiro de 2017, ainda sem fumo branco, o próprio Sócrates apresenta uma ação contra o Estado, por violação dos prazos máximos legais do inquérito. A 17 de março, a PGR anuncia a constituição de 28 arguidos, mas decide prolongar novamente o prazo de investigação. A defesa de Sócrates esperneia. Os advogados chegam a pedir a extinção do inquérito. A espera mantém-se.
Passeios, insultos, Brasil
A 11 de outubro de 2017, quase três anos depois da detenção de Sócrates no Aeroporto de Lisboa, há finalmente fumo branco: o MP acusa o antigo primeiro-ministro de 31 crimes, três de corrupção passiva, 16 de branqueamento de capitais, nove de falsificação de documentos, três de fraude fiscal qualificada. Ao todo, são acusados 28 arguidos. A PGR defende que a atuação de Sócrates “permitiu a obtenção, por parte do grupo Lena, de benefícios comerciais” e que Carlos Santos Silva “interveio como intermediário” em todos os contactos. “A troco desses benefícios e em representação do grupo Lena, o arguido Joaquim Barroca [antigo administrador do grupo] aceitou efetuar pagamentos, em primeiro lugar para a esfera de Carlos Santos Silva, mas que eram destinados a José Sócrates”, podia ler-se. O MP especificava ainda que o antigo primeiro-ministro acumulou na Suíça 24 milhões de euros “com origem nos grupos Lena, Espírito Santo e Vale de Lobo”.
Quase um ano depois, em cima do fim do prazo, a defesa do ex-governante pede a abertura da instrução. Pelo meio, os recursos sucedem-se, seja para afastar o juiz Carlos Alexandre, seja para requerer a nulidade de todas as escutas telefónicas por estarem infetadas por vírus. A 4 de maio, Sócrates pede a desfiliação do Partido Socialista, com muitas acusações a António Costa, então secretário-geral do partido. A 28 de janeiro, a instrução arranca por fim, sob a batuta do juiz Ivo Rosa, escolhido por sorteio eletrónico. Nove meses depois, Sócrates é interrogado pela primeira vez no âmbito da instrução. O interrogatório dura cinco dias. O antigo governante repete que a acusação é “monstruosa, injusta e completamente absurda”.
Por esta altura, o ex-líder socialista tinha-se já mudado de Lisboa para a Ericeira (Mafra). Em declarações a um portal local, admitiu ter encontrado na vila piscatória “um certo equilíbrio interior” e partilhou uma parte das suas ocupações: passeios a pé, corridas junto ao mar, natação, ginásio, leitura, pesquisa, escrita. Na altura, garantia que a maior parte das pessoas estavam a ser “muito afetuosas”. Mas não todas. “Há muitas que se dirigem a mim para dizer aquilo que você calcula”, admitiu. Mais tarde, a “Sábado” noticiou um episódio em que o ex-líder do PS terá sido insultado e ameaçado, precisamente na Ericeira. Em 2022, a “Visão” deu ainda conta de frequentes viagens ao Brasil, a pretexto de um doutoramento na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Voltemos à Operação Marquês. A 9 de abril de 2021, dois anos após o início da fase de instrução e mais de seis anos após a detenção, Ivo Rosa anuncia a decisão instrutória. A acusação de Sócrates é reduzida para três crimes de branqueamento de capitais e outros três de falsificação de documentos. Todas as acusações de corrupção caem, por falta de provas ou prescrição. Seria mais uma volta no carrossel do processo. O MP recorre, a defesa de Sócrates também, ambos os recursos produzem efeitos: em janeiro de 2024, na sequência do recurso do MP, o tribunal recupera uma parte considerável da acusação inicial, determinando que Sócrates seja julgado por 22 crimes (três de corrupção, 13 de branqueamento, seis de fraude fiscal); em março, o mesmo tribunal dá provimento ao recurso da defesa, anula a decisão de Ivo Rosa, por entender que a mesma “consubstancia uma alteração substancial dos factos”, e remete o processo para o Tribunal de Instrução Criminal, para que seja proferida nova decisão instrutória.
O ex-líder socialista considera a decisão uma “vitória total”. Pedro Delille, o advogado, defende que o seu cliente “está absolutamente despronunciado”, assumindo que, ao remeter para nova decisão instrutória, a Relação invalidou também a decisão de janeiro, que ditou a ida a julgamento por 22 crimes. Mas esse não é o entendimento do tribunal. Seguiu-se nova chuva de recursos, para várias instâncias. O novelo é imenso, contabilizar todos os recursos e incidentes processuais até ao momento é missão praticamente impossível, serão dezenas, talvez centenas. Em novembro de 2024, a Relação acusa o antigo primeiro-ministro de tentar “protelar de forma manifestamente abusiva e ostensiva” a ida a julgamento. Sócrates queixa-se de mais uma “campanha” contra si. A 17 de março deste ano, finalmente uma data: 3 de julho. Mas pode não se concretizar. É que a 11 de junho, na tal revisão da decisão instrutória, a juíza não só pronunciou o antigo primeiro-ministro por três crimes de branqueamento de capitais, como sugeriu que este “miniprocesso” se juntasse ao principal. A questão é que, se a sugestão for aceite pela juíza do Juízo Central Criminal de Lisboa, terá de ser dado um prazo às defesas para contestarem a nova acusação. Mais 50 dias. O que deverá traduzir-se na prescrição de mais crimes. Será desta? A NM entrou em contacto com José Sócrates, mas o antigo primeiro-ministro não se mostrou disponível para falar à nossa publicação.