Os dias correm depressa atulhados em tarefas e sem paragens para organizar a mente e processar emoções. Passar tempo sozinho torna-se um luxo, incompreendido por uns, aceite por outros. Não, não é solidão. É uma opção legítima, uma necessidade saudável.
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Nas suas consultas de psiquiatria, Boaventura Afonso costuma prescrever tempo de sofá aos pacientes. “E não, não estou a prescrever sedentarismo, estou a prescrever tempo para parar, sem telemóvel, sem televisão para organizar a mente. Ócio criativo ou não, é fundamental para o nosso bem-estar”, justifica. Há razões para essa prescrição em jeito de conselho sem as distrações habituais. “Momentos de reflexão, de introspeção, tornam-se cada vez mais escassos, vivemos imersos em estímulos, nem o telemóvel no bolso é tolerado no mundo dos smartwatches, da música e do movimento constante.” “Procuramos caminhos de Santiago, retiros espirituais porque nos sentimos desequilibrados, ansiosos e deprimidos – e estamos”, repara.
Por isso, o sofá ou outras atividades. O importante é ter tempo para estar sozinho e aproveitar. Uma caminhada ao fim de um dia de trabalho, intenso e stressante, sem ninguém ao lado, sem ter de fazer conversa ou trocar palavras. Para desanuviar, descomprimir, descansar a cabeça, antes de regressar a casa. Um fim de semana suave a ler um livro, a ver uma série, sem ninguém por perto, num silêncio interior que sabe bem. Uma tarde em que a família e os amigos ficam em pausa, sem interações, sem interrupções. Aquela viagem sem companhia apenas porque se quer, apenas porque é tão necessária.
Passar tempo sozinho não tem de ser um processo doloroso, aborrecido e triste. “Não, de todo, pelo contrário, é o prazer de nos sentirmos bem na nossa própria companhia, em termos o nosso tempo”, observa Júlia Machado, psicóloga clínica. Não tem de ser um momento aflitivo. “Estar sozinho não tem, forçosamente, de ser um tempo angustiante. Quando cultivado com intenção, pode tornar-se um momento de encontro connosco próprios”, refere Andreia Filipe Vieira, psicóloga clínica. Claro que há silêncio, o silêncio necessário. “O silêncio pode, por vezes, confrontar-nos com pensamentos e emoções difíceis. No entanto, é precisamente essa introspeção que nos permite crescer, processar vivências e tomar decisões mais conscientes”, acrescenta.
Há dias e dias, momentos e momentos, e aquelas alturas em que é preciso travar a fundo, desligar, estar só. “Este tempo é particularmente importante após mudanças ou perdas significativas, quando sentimos confusão ou exaustão mental, em momentos de tomada de decisão e sempre que sentimos necessidade de ‘recarregar’ emocionalmente”, diz Andreia Filipe Vieira, especializada em psicoterapia psicodinâmica. Estar só apenas e exclusivamente quando algo perturba e incomoda? “Não. Estar sozinho não deve ser apenas um recurso em momentos de crise. Pelo contrário, a solitude é um componente essencial do bem-estar psicológico. Permite-nos organizar a mente, processar emoções, reencontrar o equilíbrio e retomar o rumo da vida com maior clareza.”
Por vezes, há medo e resistência. Percebe-se porquê. “Há quem evite estar sozinho com receio dos seus próprios pensamentos, ideias ou memórias. Mas fugir de si mesmo é apenas adiar um encontro inevitável”, alerta Andreia Filipe Vieira.
Por vezes, há aquela sensação de que os outros não vão entender esse espaço, aquele receio de serem entendidos como obstáculos. Júlia Machado fala sobre isso. “As pessoas estão cada vez mais despertas para esse tempo, já se fala muito de autocuidado, mas, por vezes, não têm consciência de como o fazer. Têm necessidade, mas não têm coragem, têm receio que os outros não entendam.”
Há ainda outra questão. Solitude e solidão não são a mesma coisa, apesar de frequentemente confundidas. Na solitude, há prazer. Na solidão, há sofrimento. Júlia Machado, especialista em psicoterapia cognitiva comportamental, separa as águas. “Somos seres sociais e a solidão pode provocar danos emocionais, mesmo com outras pessoas à volta.” Solitude é outra coisa. Andreia Filipe Vieira esmiúça os dois conceitos. “A solidão é frequentemente associada a sentimentos de vazio, abandono ou tristeza. Já a solitude refere-se à capacidade de estar bem consigo próprio, em silêncio e em conexão interna. É voluntário, saudável e reparador, e permite-nos estar connosco mesmos.”
Esse tempo pode ser ocupado de várias formas, em atividades domésticas, arrumar o quarto ou lavar roupa, ir ao cinema ou ao teatro sem companhia, passear à beira-mar, ir ao café, a um concerto. Sozinhos com a própria companhia. A tranquilidade e a liberdade de escolher o que fazer e como fazer são momentos importantes, que fazem diferença em vidas apertadas, tolhidas pelo peso das responsabilidades.
Mas parar não é fácil, ocupar permanentemente a mente é escapar de emoções que se querem evitar, do descanso, de respirar sem relógios. Boaventura Afonso olha para o modelo social, replicado uma e outra vez, vezes sem conta. “Somos analfabetos emocionais, não nos ensinam na escola o funcionamento da nossa vida psíquica, sobre as emoções e os afetos. Ensinam-nos a olhar para fora, mas raramente a olhar para dentro, ‘não penses que isso faz mal, esquece, faz mas é desporto’.”
Maturidade emocional
A psicologia aborda o assunto, o desejo de estar só, e ensina que evitar o desconforto emocional prolonga e perpetua o sofrimento, a dor. Olhar para dentro é importante. “A psicologia reconhece o desejo de estar só como uma necessidade legítima e, muitas vezes, saudável. Pessoas com maior autorregulação emocional, autonomia e consciência de si próprias tendem a valorizar este tempo”, nota Andreia Filipe Vieira. Há virtudes e benefícios. “O estar só é, frequentemente, o espaço onde surge a criatividade, a cura emocional e o verdadeiro autoconhecimento. O tempo a sós é uma prática de autocuidado e não um sinal de isolamento”, garante.
Boaventura Afonso volta muito atrás, ao tempo de “A República” de Platão, livro que mostra o Homem como ser tendencialmente social. É indesmentível, ninguém duvida desse facto. O problema, sustenta, é quando se tenta configurar o homem à luz da máquina, da engrenagem competente, funcional, sem afetos. E não pode ser. “Quando o ser humano contém em si potencialidades enormes para se conhecer e transformar mal psíquico insuportável em suportável quando compreendido”, enquadra o médico.
Nas suas consultas, Júlia Machado escuta desabafos, a falta de tempo é um deles, o desgaste diário é outro, o turbilhão constante é referido com frequência. Há, de certa forma, uma frase batida que soa a lamento: “passei a vida a cuidar dos outros, esqueci-me de cuidar de mim”. “Há pessoas que têm essa dificuldade de ter tempo para si próprias. Criam esse hábito, essa rotina, estão sempre no mundo das tarefas, sempre a servir os outros, sentem-se sozinhas.” É necessário um equilíbrio. A dependência emocional é uma das maiores barreiras à solitude, ao tempo de estar só e usufruir, desfrutar simplesmente.
Júlia Machado não esconde que é um bom exemplo da solitude, de tempo só para si. Tem filhos e companheiro e aprecia uma caminhada, um bom livro, um retiro de mindfulness, um spa sem pensar na agenda dos dias que se seguem. “Tenho mesmo essa necessidade, esse tempo para mim, para estar no sofá, ler um livro, fazer uma caminhada, até mesmo ir jantar sozinha”, conta.
Andreia Filipe Vieira volta à solitude para acrescentar vantagens. “É na solitude que nos reencontramos, que ganhamos força e que nos tornamos mais disponíveis para nós mesmos, para os outros e para a vida.” E é possível divertirmo-nos sozinhos? “Sem dúvida. Aprender a usufruir do próprio tempo, seja a ler, caminhar, viajar ou simplesmente estar, é um sinal de maturidade emocional”, responde. Essa procura de estar só não é solidão, portanto.