"Pai aos 50" é um espaço de opinião semanal assinado pelo escritor Joel Neto
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Há uns anos, estando de visita à ilha uma escritora que eu conhecia, e não havendo mais ninguém para jantar com ela e a família, alguém nos pediu que fôssemos nós. A Marta ainda não estava grávida do Artur, mas já tínhamos tido uma primeira gravidez, pelo que a ideia de ver em acção uma família onde as urgências da parentalidade tivessem de ser conjugadas com os imperativos da literatura não nos pareceu desagradável. Além disso, era Inverno.
- Não gosto de fazer isto, mas vai ter de ser - anunciou a escritora, assim que nos sentámos. Tirou um tablet da bolsa: - A verdade é que, sem isto, não vamos conseguir conversar. - E, acto contínuo, abriu o tablet em frente à filha, com um desenho animado que a prendeu de imediato.
E não é que eu não saiba o quão fácil é vir agora condenar aquele gesto. É fácil e é popular. Com certeza recolherá mais aplausos do que o contrário - logo a mim, que sempre tive um fraquinho por dizer o indizível. Mas a verdade é que me lembro da escritora do outro lado da mesa, tão bonita como sempre, até mais despretensiosa do que me lembrava. Lembro-me do seu marido, aliás adorável, um daqueles cientistas sensíveis, carregados de inteligência emocional, tão bem-sucedidos nos negócios como no amor. Mas não me lembro da menina.
Não me lembro dos olhos dela. Não me lembro do cabelo dela. Não me lembro, seguramente, do nome dela. Nem da idade, na verdade - eu diria que entre os três e os quatro anos, mas sem certezas. E, se de repente alguém lesse este texto e, identificando a escritora, me dissesse que só me tinha enganado no sexo da criança, porque o que ela tem é um menino, o mais provável era que eu o aceitasse sem protestos.
Portanto, jantámos uns com os outros quatro pessoas. A criança talvez até tenha comido - também não me lembro -, mas não esteve ali. Nem disse nada, nem ouviu ninguém, nem aprendeu o que quer que fosse. E eu lembrei-me disso durante a tarde de ontem, domingo, enquanto a Marta lidava com os seus enjoos, eu tentava descansar na rede e o Artur brincava na terra, de pés descalços, com pedras e carumas com que construía não sei que histórias, entretido.
É claro: neste momento faz 15 birras ao dia, começa a III Guerra Mundial de cada vez que é contrariado e, no auge do stress, pode bem agarrar num livro de cima da mesa e dar com ele na cabeça de alguém (sobretudo uma das nossas). "Mas ao menos não passa o dia agarrado ao tablet", murmurei para mim mesmo. Nem ao telemóvel, com que ainda só tirou fotografias, nem tampouco à televisão, que vê meia hora por dia. E não estou certo de que algum dos que tenham tido a ocasião de jantar com ele haja voltado para casa sem saber de quem se tratava. Coitado dele.