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É uma menina. Nós já suspeitávamos que era uma menina mas agora é oficialmente uma menina, e quando a médica virou o monitor para nós, com um sorriso luminoso:
- Aqui está.
As lágrimas afloraram-me de imediato aos olhos, obrigando-me a esconder o rosto de vergonha.
Pensava, não naqueles três risquinhos que a médica se esforçava por iluminar, e que não cheguei a ter o discernimento de registar o que de facto significavam, mas na quantidade de vezes que sonhei ser pai de uma menina, em todas as meninas de que fiz personagens nos meus livros, no próprio Artur respondendo:
- Quero um bebé-menina.
De cada vez que lhe voltávamos a chamar a atenção para a barriga da mãe e o desafiávamos a entusiasmar-se connosco:
- Gostavas que o teu bebé fosse menina ou menino?
Menina, claro. Partilha-o com o pai: todo ele é metabolismo, força bruta, excepto na parte em que o fascina o universo feminino. Perguntamos-lhe pelos amigos do jardim-de-infância e fala sempre na Teté ou na Vitória. Sentamo-nos com ele a almoçar no restaurante e, quando damos por ele, já está há que tempos a trocar macaquices com a senhora da mesa ao lado. Até no caso dos cães, parece-me, tem uma predilecção pela Colette, apesar de o Gauguin ser tão mais sereno, equilibrado, fiável.
Portanto, em Março voltam a equilibrar-se os sexos nesta família: três machos, três fêmeas e um total de 14 patas (fora lagartixas e outros rastejantes). Como nos acomodaremos, não sabemos bem ainda. Talvez tenhamos de fazer aquela extensão à casa, como há tanto tempo imaginamos - uma casa de banho extra, um walk-in-closet, um quarto 360º contra a grande parede vegetal ao fundo, da araucária grande e para além dela. Talvez tenhamos de resignar-nos ao que há, por agora, que bolsa de escritores é coisa limitada e, além do mais, a livraria consumiu tudo o que havia.
Não importa: vai nascer uma menina - vamos ter uma menina! -, e nada agora poderia parecer-nos tão venturoso como isso, a não ser o facto de estarmos aqui os três à espera dela. O resto, que espécie de disponibilidade trará, que idiossincrasias insistirá em ir-lhe adicionando, o que aprenderá mais depressa e mais devagar do que o irmão, o que poderemos nós vestir-lhe ou dar-lhe de comer - parece tão pouco, tudo isso, por agora, se comparado com a circunstância de que vai nascer uma menina, e nós sermos os pais dela, e ela a irmã do Artur, e o Gauguin e a Colette os cães de nós os quatro, e nós os seis a família dos nossos familiares, e os amigos das nossas amizades, e as pessoas desta casa.
Mas, sim, nome já lhe demos. Escolheu-o a mãe, há muitos anos, como há muitos anos eu tinha reservado o de Artur: será Salomé.

