"Pai aos 50" é um espaço de opinião semanal assinado pelo escritor Joel Neto
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"A vida nunca está resolvida", diz-me ele, e eu respondo como se costuma fazer: "Ora aí está". Mas depois lembro-me do percurso de vida daquele homem, do casamento desfeito sem aviso, da partida dos filhos para outro arquipélago, das companheiras que não perduraram, da ameaça de AVC, do ataque cardíaco - 20 anos de desventuras a que respondeu seguindo em frente, sem desistir do bom gosto, do interesse na marcha do Mundo, da defesa do bem, da decisão de não se queixar. Poucos o saberão mais plenamente do que ele: a vida nunca está resolvida, e a nossa história não é apenas a do que fazemos para tentar resolvê-la, mas a do que continuamos a fazer apesar de não a podermos resolver.
Desde que o Artur nasceu, não tarda faz três anos, que essa ideia anda comigo. Ser pai tarde vulnerabiliza-nos mais nesse sentido do que nos outros, e sê-lo numa família minúscula, reduzida pelas mortes prematuras e a crueldade, mais ainda. A livraria tem um mês extraordinário, daqueles que de repente mostram toda a acuidade de se meter as economias familiares num negócio de livros numa terra com 55 mil almas e os piores índices de escolaridade do país, e eu volto a lembrar-me: "A vida ainda não está resolvida". Umas análises ao sangue acusam uma flutuação no PSA, dessas que tanto podem querer dizer um comprimido ao pequeno-almoço como a emasculação ou a morte, e eu repito: "Seja como for, a vida nunca está resolvida". A Marta pousa os olhos em mim ao fim de uma tarde de verão, os dois de mão dada por sobre a alavanca das mudanças, com o Artur dormindo no banco de trás, e eu insisto: "Alegra-te, Joel, mas não julgues que a vida está resolvida".
Por muito que a tua mulher te ame, não te esqueças de que deves continuar a merecer esse amor. Assustas-te porque o teu médico te manda fazer um exame complicado, mas se ele te receitasse uma aspirina continuarias vulnerável a todos os outros problemas de saúde. O teu projecto de vida está a correr bem, mas persiste uma quimera e, aliás, tu persistes em querer geri-lo honestamente, o que é outra. A tua vida não está resolvida. As vidas da tua mulher e do teu filho não estão resolvidas, nem sequer no que depende de ti ou te compete. A vida do teu novo filho não está resolvida - nem sequer começou propriamente, e ainda correrá tanta água debaixo das pontes antes que se definam as condições em que começará que qualquer proclamação sobre ela é uma ilusão.
E, sim, é claro: tudo isto já era uma realidade antes de eu me tornar pai. Mas só depois desse momento se transformou numa verdade. No fundo, é isso a paternidade: o momento em que a realidade ascende à condição de verdade.

