Filipe faz hemodiálise, viaja com três filhos pequenos, já visitou mais de 40 países. Inês passa os dias a correr o Globo, é diabética e celíaca. Eduardo tem leucemia, sobe as montanhas mais altas do Planeta. E Aurélio chegou a viajar numa autocaravana com máquina de diálise. O diagnóstico não foi sentença.
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Estávamos em março de 2019, Filipe Almeida já fazia hemodiálise três vezes por semana, passava seis horas agarrado a uma máquina de cada vez, quando, empurrado pelo sonho da mulher, Catarina, fez as malas para dar a volta ao Mundo. Sim, o plano era exatamente esse, correr o Planeta numa espécie de grito de liberdade, com um filho pequeno, a família toda de mochila às costas. A doença não haveria de ser impedimento. “Foi uma ideia muito motivada pela Catarina, que largou o emprego para perseguir este sonho. Eu fazia hemodiálise, estava a ganhar vida com a máquina, mas a máquina prendia-me. Percebi, nessa altura, que a maioria das pessoas não viajava a fazer diálise, muitas nem sequer para passar férias no Algarve. E foi aí que pensei que se consigo fazer diálise cá, também conseguiria fazer no estrangeiro.” Nascia assim o projeto “All Aboard Family” para relatar a história, que primeiro era apenas um blogue, hoje é uma página de Instagram com quase 180 mil seguidores.
Mas recuemos ao princípio de tudo. Filipe descobriu a doença autoimune ainda catraio, uma nefropatia por imunoglobulina A. Começou a ser medicado, a tentar atrasar a evolução, longe de imaginar que um dia viria a precisar de fazer hemodiálise. Esse choque só chegaria em adulto, já ele era um homem feito, casado, o primeiro filho prestes a nascer. As análises começaram por denunciar o cenário de insuficiência renal, logo a seguir vieram os sintomas, os vómitos, a perda de apetite. Foi ligado à máquina pela primeira vez a 19 de abril de 2017, não dá para esquecer a data. À época, Filipe tinha uma empresa de passeios turísticos em Lisboa, fazia hemodiálise à noite para poder trabalhar durante o dia. Até que aquela viagem, aquela volta ao Globo, lhe mudou a vida. Vendeu a empresa, a casa, largou as amarras e foi. Tudo planeado ao milímetro. Fez marcações de hemodiálise nos países de destino, a cada três semanas voltavam a Portugal para confirmar que tudo estava bem e logo retomavam a rota.
Primeiro, Bahamas, Cuba, México. Depois, Jordânia, Israel, Turquia. Seguiram-se três meses a viajar de carro pela Europa, “e aqui, como existe cartão europeu de saúde, a diálise é gratuita”. Logo depois, partiram para a Ásia, onde “não é fácil encontrar diálise e não havia muita informação”. “Fora da Europa, tem de ser em hospitais privados. Cada sessão pode ir dos 60 euros, que paguei no Sri Lanka, aos 600. E, claro, isto acresce ao valor da viagem.”
A diálise rouba-lhes dias para desfrutarem, também mexe com o orçamento, obriga a uma preparação minuciosa, a marcações muito antecipadas, com largos meses de antecedência. “E exige muita burocracia. Temos de enviar documentos, análises, tudo tem de ser aprovado.” Nada os travou. Nem o filho Guilherme, então com dois anos, foi uma questão. “Antes de começar a fazer diálise, já viajávamos de vez em quando e diziam-nos que quando tivéssemos filhos não conseguiríamos viajar tanto. Há que desmistificar esta ideia. Perguntavam-nos, muitas vezes, o que lhe dávamos de comer e a verdade é que arroz e fruta há em todo o lado.” O mais curioso é que a jornada ainda lhes trouxe uma surpresa. Na Tailândia, Catarina descobriu que estava grávida, o segundo filho a caminho. Foram aconselhados a não seguir para a Índia por causa do vírus zika, acabaram por interromper a volta ao Mundo, regressar à base, a Lisboa. A pandemia ainda se atravessou pelo meio, foi aí que apostaram nas redes sociais e perceberam que aquela aventura lhes trouxe uma notoriedade que não esperavam. Acumulavam cada vez mais e mais seguidores. A conclusão foi óbvia: podiam viver disto e nunca mais pararam.
Hoje têm três filhos, além de Guilherme, de oito anos, que já pisou mais de 40 países, também Manuel, de quatro, e Vasco de três, viajam com os pais. Os pequenos já nadaram com tubarões, viram tartarugas-gigantes, conheceram outras culturas e religiões. “Arrisco dizer que, neste conceito de viagem, somos a família número um em Portugal em seguidores.” E a logística, essa, foi-se simplificando com o tempo. Levavam “300 malas” no início, agora duas dá para os cinco.
O mais difícil é mesmo a diálise, que lhes limita os horizontes. “Há países onde não existe, outros onde é muito caro. Adorava ir a Aruba, mas cada sessão aí são 700 dólares, não é viável.” Filipe passa a vida a responder a dúvidas de quem também faz diálise e sonha viajar, a incentivar outros como ele. E acumula histórias sem fim. Chegou a enganar-se no hospital em Veneza, no Egito abriram uma clínica só para ele a um domingo, já teve viagem paga para a Islândia quando o informaram, dias antes de partir, que não tinham vaga para diálise e foi tudo por água abaixo. Mas guarda uma certeza absoluta: “É possível viajar a fazer diálise e com filhos”.
Liderar viagens apesar da diabetes
Inês Inácio, 31 anos, não tem filhos, mas as doenças – sim, são duas – também nunca foram condenação. Talvez seja a ligeireza com que vive, que batiza de irresponsabilidade, que a tenha ajudado. São quase três horas da madrugada em Bali, está a preparar-se para rumar a Singapura e faz uma pausa para contar a história. Tinha 20 anos quando descobriu o mundo das viagens. Foi para Itália em Erasmus e percebeu logo aí que viajar a apaixonava. Só ainda não imaginava que poderia fazer disso o seu trabalho. Quando voltou a Portugal, terminou o curso em Relações Públicas e Comunicação Empresarial e trabalhou cinco anos e meio numa empresa. “Durante esses anos, comecei a viajar cada vez com mais frequência. Viajava todos os meses. As doenças nunca foram impedimento.”
Foi na adolescência que Inês descobriu ser diabética tipo 1, tinha 14 anos quando se viu forçada a aprender a “picar o dedo e a injetar insulina”. Poucos meses depois, descobriu a doença celíaca, “porque a insulina não estava a atuar”. “Aí tive de aprender a comer alimentos sem glúten, nada de aveia, centeio, cevada e trigo. Então optei por fazer só a dieta celíaca e não evito efetivamente o açúcar. Compenso com insulina. Caso contrário, é mesmo muito difícil.” A família e amigos foram almofada para o choque, mas a dinâmica da vida mudava aí. “De repente, sou uma criança que tem de pensar em tudo o que faz. Se me apetece comer um chocolate ou até uma maçã, tenho de pensar em quanto vou dar de insulina. Sempre fiz muito desporto, competi pelo menos em cinco modalidades, e se decidir agora fazer uma corrida, tenho de levar pelo menos um banana.”
Isso até podia amedrontá-la, refrear-lhe as ambições de aventuras maiores, mas não aconteceu. Começou a cozinhar o sonho de ser líder de viagens depois de fazer muitas como participante, até que foi convidada para discursar na Bolsa de Turismo de Lisboa, em 2023, sobre viajar com limitações. Uma agência de viagens ouviu-a falar deste sonho, convidou-a para ser líder de viagens, começou como um part-time, agora é a vida a tempo inteiro, profissionalizou-se. Hoje, é líder de viagens na Landescape, corre o Mundo todo, numa gestão minuciosa. “Não posso viajar sem a caneta de insulina. A caneta aguenta até um mês fora do frigorífico, então, quando estou fora um mês, trago uma caneta e uma de reserva. Também uso um sensor no braço, que mudo a cada 14 dias. Quando venho um mês, tenho de trazer pelo menos dois.” Se a viagem é maior, a logística adensa-se, a insulina não aguenta dois meses fora do frigorífico. “Para países de calor, trago uma bolsa que permite guardar as canetas dentro de água e manter a temperatura. Não dá para estarem no frigorífico, porque ando sempre a mudar de alojamento.” Às vezes tem de ser criativa, como quando esteve em S. Tomé e Príncipe a fazer voluntariado, “num sítio sem luz nem água corrente”. “Nem pensei nisso antes de ir, mas eles têm vasilhas de barro, pus água dentro e era assim que guardava a insulina.” Na Lapónia, com temperaturas negativas, os cuidados eram o oposto, embrulhava a insulina em roupa “para não congelar”.
A par disso, como é celíaca, Inês enche sempre a mala de comida, com cereais e snacks. “Se não houver mais nada, posso comprar leite e desenrascar um almoço ou jantar. Mas tenho de gerir bem.” A descontração absoluta ajuda-a a nunca entrar em pânico, faz sempre a mala à última hora, só no dia anterior vai ao supermercado. “Há sempre solução, no limite como fruta, que há em todo o lado. Com a medicação é que tenho de ser mais regrada.”
É um espírito livre, primeiro vai, depois resolve. Uma vez, na Amazónia, fez as contas, estava a três horas de um hospital e era a líder da viagem, tinha pessoas à sua responsabilidade (que avisa sempre da sua condição), mas não se detém muito a matutar, “é pensar sempre que vai correr bem”. “Isto não me limita de maneira nenhuma, obriga é a uma gestão grande.” Uma das histórias mais marcantes aconteceu em Cabo Verde. “Fiz quatro ilhas com amigas e quando chegámos à ilha do Fogo, elas quiseram subir ao vulcão. Uma regra básica é levar comida. Para elas uma sandes servia. Mas eu não tinha levado comida, estava num sítio remoto, encontrei uma mercearia no meio do nada e comprei uma lata de salsichas.” De meia em meia hora, Inês media os níveis de açúcar no sangue, picou o dedo “umas 68 vezes”.
A somar a tudo, é inquieta, tenta experimentar um novo desporto em cada país. Ora se atira de um avião, ora faz rafting, snorkeling, mergulho, canyoning, stand up paddle, parapente. E põe os olhos no mapa: falta-lhe pisar a Oceânia e a Antártida. Há de ir.
A leucemia não foi sentença
Descomplicar – parece ser essa, afinal, a fórmula de quem não se deixa aprisionar por medos, nem mesmo quando se parte para os lugares mais recônditos com uma doença a bordo. Eduardo Lopes, 60 anos feitos em janeiro, passou os últimos dias a fazer alpinismo em Itália, não consegue parar. Tem ânsias de correr o Mundo. Foi militar da Marinha, passou à reserva há dois anos, o tempo todo para viajar. Na verdade, já na adolescência viajava de mochila às costas com amigos. E, mais tarde, quando começou a trabalhar, quase todos os fins de semana estava a apanhar aviões. “Sempre fui assim, sofro de wanderlust, de paixão por viajar”, conta. Só que a vida quis atirá-lo ao chão, já por mais do que uma vez. A “prenda de aniversário” chegou em 2018, recebeu “no dia de anos” o diagnóstico de leucemia. “Foi um choque brutal, pensa-se sempre que só acontece aos outros.” A quimioterapia era o caminho, não quis parar de trabalhar, insistiu com o médico para fazer os tratamentos sempre no final da semana, mesmo com os avisos de que não iria aguentar. “Claro que foi difícil, mas continuei a trabalhar sempre, recuperava no fim de semana, e não disse a ninguém. Só a mãe do meu filho – que também estava com cancro da mama e entretanto faleceu – e o meu filho sabiam”, relata.
É de remar contra a corrente, disfarça as dores com a força de viver, nem aí parou de viajar. “Uma vez, saí dos tratamentos na sexta, apanhei um avião para a Escócia e andei a fazer caminhadas por lá. Voltei no domingo, na segunda já estava a trabalhar. Não tinha energia, mas nem que fosse a rastejar, a doença ia ter de se esfarrapar para me travar.” Ainda foi à Bélgica e à Suíça. Foram seis longos meses de quimioterapia, ao sétimo o médico sentou-se à sua frente. “Disse-me ‘não sei o que fizeste, mas isto desapareceu’.” Eduardo ficou lavado em lágrimas, a vida parecia voltar a escrever direito. “Só que esta doença é chata e voltou a aparecer em 2023, cinco anos depois, logo quando passei à reserva e ia ter o tempo todo.” Agora o cenário é diferente. A quimioterapia já não é resposta, faz imunoterapia, três comprimidos por dia, um tratamento violento. “Tem umas mil contraindicações, era um risco, mas não havia outra solução. Emagreci logo 11 quilos, estive quase a bater a bota, fui-me adaptando. Isto não é para me curar, é para me manter vivo. Mas eu tenho muita esperança.” Viver com um prazo-limite é uma tormenta em que não pensa, di-lo assim cheio de frontalidade. Disseram-lhe que tinha cinco anos de vida e Eduardo só pensou no que lhe falta fazer. “Raramente penso na doença, podia estar em contagem decrescente, mas não penso assim. A medicina está sempre a mudar, podem surgir novos tratamentos até lá.”
Viajar, foi esse o seu maior foco. Mesmo com os efeitos colaterais da medicação – já leva três pneumonias, uma pancreatite aguda –, ainda não parou. Desde então, já foi ao Nepal subir os Annapurnas, também ao Kilimanjaro, e aí teve de levar uma injeção antes de ir, “estava muito mal”. Ainda esteve na Lapónia, Serra Nevada, Nova Zelândia, Japão, Laos, Camboja e Vietname, tem uma agenda carregada. “Há uma amiga que me diz que devia estar em casa a proteger-me, mas é uma escolha. Eu estou apaixonado pela minha leucemia e ela por mim. A leucemia trouxe-me muita coisa. Tenho uma relação boa com ela.”
Tanto assim é que se dá a “maluqueiras”. No ano passado, estava a recuperar de uma pneumonia quando subiu quatro montanhas em quatro dias, “as mais altas de Marrocos”. “Passei mal, mas fico pior se não for, prefiro assim”, confessa. Os planos são um rodopio, vão até 2026. Este ano, vai fazer caminhadas sozinho para o Quirguistão, a dormir em tendas, também vai percorrer trilhos à Islândia, talvez vá fazer a volta à Sardenha a pé, logo depois viaja para a Patagónia. “Ainda quero fazer a Aconcágua, a montanha mais alta da América do Sul, no próximo ano. E o Evereste, se ainda cá estiver.” Com os fusos horários, anda sempre a fazer contas para tomar a medicação à hora certa, nada que o aflija. Antes de ir, vai ao hospital levantar medicação suficiente para o tempo em que vai estar fora, leva sempre a mais, a contar com imprevistos. Além de uma panóplia de medicamentos para infeções, nomeadamente antibióticos. “Ninguém percebe como consigo fazer isto a fazer imunoterapia. Mas sinto-me bem, dá-me uma satisfação interior chegar ao cume de montanhas.”
Há uma leveza que as viagens parecem emprestar quando a doença invade os dias. E que é transversal em todas as histórias aqui contadas. Aurélio Oliveira não é diferente nisso, é mais contido na loucura, mas também não deixa que a doença lhe marque o compasso da vida. Conta 58 anos e faz hemodiálise há 37, há de escrever um livro quando completar 40. Recuemos, pois, no tempo. Uma queda na escola, tinha ele 17 anos, comprometeu-lhe todo o aparelho urinário e, aos 23, começou a fazer hemodiálise, consequência da insuficiência renal. “Fui, aliás, um dos primeiros doentes em Portugal a fazer diálise em casa. Tinha a máquina em casa e podia fazer à hora que queria. A Centrodial, clínica em S. João da Madeira, possibilitou isso”, revela. A ideia era dar mais autonomia aos doentes, num projeto-piloto que depois do teste não foi para a frente. Foi nessa altura que Aurélio, com amigos, criou a Liga dos Amigos da Centrodial, que acabou a comprar uma autocaravana equipada com a máquina. “Os doentes requisitavam a autocaravana e iam de férias, podiam ir para sítios onde não se fazia diálise. Claro que tínhamos de picar a agulha no nosso próprio braço, exigia preparação. Nessa época, fiz a costa toda do sul de França, Espanha e Itália. Cheguei a fazer diálise nos Pirenéus e no Mónaco. Em qualquer sítio onde parasse, podia fazer.”
Como o projeto não avançou, vendeu-se a autocaravana. “E vi-me confrontado com o problema de ter de agendar tratamentos sempre que quero ir para fora.” Toda a vida viajou, desde miúdo. Em lazer e em trabalho. A diálise não foi sentença. É empresário, tem uma fábrica de equipamentos industriais e outra onde se faz fio de papel, visita feiras internacionais e clientes com frequência. “Faço diálise três vezes por semana e em determinados sítios não conseguia marcar tratamentos. Mas sempre fui muito autocontrolado, consigo estar quatro ou cinco dias sem fazer diálise se for preciso. Às vezes até prefiro, para poupar tempo.” Ser autocontrolado é como quem diz andar “quase a pão e água”. “Controlo muito bem o que como e o que bebo. E não morro.” Aurélio já lhes perdeu a conta, mas fez diálise em Espanha, Itália, França, Alemanha, no Brasil. Marca sempre com meses de antecedência para garantir vaga. A África nunca foi, é um dos objetivos, quer ir a Cabo Verde. E sonha fazer um cruzeiro, já andou a investigar. “Há uma companhia italiana que tem um barco de cruzeiro com clínica de diálise. Mas tem de ter um número mínimo de participantes.”
A diálise limita-o, é certo, gostava de ir à ilha Fernando de Noronha, não é possível. “E nos sítios onde é possível, o dia em que tenho de fazer é sempre um dia estragado.” Já para não falar do preço fora da Europa, que chega às centenas de dólares por sessão. Ainda assim, continua a voar pelo Mundo fora e a trazer histórias para contar. “Numa das viagens ao Brasil, fui para Porto de Galinhas e marquei diálise numa clínica a cerca de 30 quilómetros. Quando lá cheguei, percebi que ficava no meio de quatro favelas”, lembra. Há de contar esta e outras memórias no seu livro. “Quero mostrar que isto não é o fim do mundo. O mundo desaba quando se descobre que temos uma doença destas, mas é possível continuar a viver e a viajar.”