Cidadania Impura
Corpo do artigo
A minha mãe diz que o dr. Vítor Valente é um santo porque ele é que lhe tem dito, ano após ano, que ela está salva do cancro. Com o tempo, o dr. Vítor vai ficando branquinho, como se lhe nevassem as ideias ou fizesse dieta de apenas hóstias imaculadas. Há dias, na pressa da minha mãe de saber resultados e perder o medo, fomos ouvir as suas palavras e sempre nos alegra o cuidado e a boa sorte. Somos muito gratos pelo cuidado e pela boa sorte.
Os médicos que nos mantêm saudáveis deviam de ser levados para piscinas calmas e ter quartetos de cordas a tocar os Vivaldis mais ternos, com violas de arco e o sol sempre às dezassete horas, para ser quente sem agressão. Os melhores médicos deviam de ter electrodomésticos perfeitos, que cozinhassem e limpassem sozinhos e haveriam de lhes nascer filhos simpáticos que fossem feitos só de alegria, inteligentes e a vida toda a pintar postais amorosos como se faz no jardim infantil. Eu e a minha mãe queríamos que o dr. Vítor tivesse um carro com mais de mil cavalos e mil éguas e que procriassem no motor e até o carro desse filhos alegres e inteligentes que cavalgassem depois por campos das mais belas flores silvestres.
Se o mundo fosse justo, aqueles que nos salvam das doenças tinham de ser bem tratados e nem deviam necessitar de dinheiro. Fariam suas encomendas sem preços e as empresas entregariam com portes grátis nas piscinas onde estariam a pensar em mais curas e mais boas notícias para dar aos pacientes.
Quando vamos ao SNS para a monitorização da saúde da minha mãe, costumamos ir como quem faz preces ao caminho e volta na folia de um arraial. A cada consulta superada, mais festa fazemos a juntar às festas anteriores. E paramos no café à entrada do parque de estacionamento, comemos logo bolos e bebemos laranjas espremidas ou pêssegos. É melhor do que ser aniversário. É a melhor arte de viver. Muitas vezes, nem regressamos logo a casa. Vamos para o centro comercial para cobiçar roupas e ver como ficamos bonitos e mexemos as pernas a fazer exercício físico. Estamos sempre mais jovens. Quando nos informam da boa saúde, rejuvenescemos. Somos quase aos saltinhos.