Quando o nosso coração já nasce com malformações, isso não significa a ausência de uma vida normal. Com acompanhamento e tratamento médico, muitos dos problemas podem ser resolvidos. Até os mais raros.
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Recordar os primeiros meses do seu segundo filho mexe com o coração de Ana Paula. Mais ainda porque a história é efetivamente sobre o coração do seu menino. Mal ele tinha saído das entranhas da mãe o médico auscultou-o e ouviu-lhe um "ruído". O bebé foi reencaminhado para um cardiologista pediátrico. "Foi o doutor Monterroso que lhe fez os exames e nos explicou depois a situação. No fim, deu-nos um livrinho onde sublinhou a cardiopatia congénita do Afonso, Tetralogia de Fallot. Enquanto pais sentimos que o mundo estava a desabar."
Quando a consulta acabou estavam de rastos. Ana Paula teve o impulso de pegar no livro e começar a ler. "Havia uma frase que dizia que se os meninos fossem operados com sucesso até podiam vir a praticar desporto. Virei-me para o meu marido e disse-lhe, "vamos conseguir"." Afonso era um bebé enérgico, os pais estavam atentos porque bastaria um banho mais quente ou um choro mais intenso para espoletar uma crise. "Tentámos que fosse tendo uma vida tranquila até à cirurgia."
Aos sete meses o médico disse-lhe: "Ó mãe, vamos ter de fazer alguma coisa". A operação decorreu em Lisboa e demorou seis horas. Foi um sucesso. Cinco dias depois estavam os três no carro de regresso ao Porto. "A partir daí, foi sempre uma criança normal."
Quando Afonso tinha cinco anos, Ana Paula lembrou-se novamente do livro que o médico lhe tinha dado. "O meu filho mais velho jogava futebol e o mais pequeno também quis. Falámos com o doutor Monterroso, não havia motivo para que não praticasse desporto." Assim que fez sete, um olheiro do F. C. Porto viu-o jogar e foi feita uma proposta. "Fiquei assustada. Seriam treinos mais puxados, e liguei ao doutor, que me voltou a tranquilizar. Só a partir dos 12 é que achou por bem que ele fizesse uma prova de esforço. Com isso, eu acho que ele até está mais protegido que qualquer outro menino."
Hoje com 15, Afonso até se esquece que tem uma marca no corpo para toda a vida. "Só me lembro quando no início da época tenho de ir fazer os exames. Nunca tive receio que me acontecesse alguma coisa. Seria um desgosto parar de jogar, mas se acontecesse tinha de aceitar. O meu sonho é ser jogador de futebol." É a mãe quem remata a conversa. "O que faz o Afonso feliz é o futebol, é no que ele investe. E deve aproveitar ao máximo, mas sempre com os pés bem assentes. Pode vir a ter que abandonar os campos, seja pelo coração ou por outro motivo qualquer." Até ver, continuará a ser atleta de alma e coração.
José Monterroso, hoje cardiologista pediátrico do Hospital e do Instituto CUF Porto, explica que as cardiopatias congénitas, "as doenças do coração que já nascem connosco", à partida "são detetadas na infância". Muitas vezes "logo após o nascimento o pediatra percebe algo, pode ser um sopro cardíaco, um barulhinho que o coração faz, e se suspeita manda para o cardiologista pediátrico". Depois são feitos exames para se encontrar a causa desse barulho "e aí podemos encontrar uma doença".
As cardiopatias mais frequentes são "coisas menos importantes, pequenos buracos no coração e pequenos problemas nas válvulas, alguns até corrigem com a idade. Contudo, existem outros mais complicados." Como malformações que não deixam que o coração desempenhe a sua função de bombear o sangue para o corpo, transportando oxigénio e energia às células. "Pode haver um entupimento que faça com que o sangue não passe, um buraco entre o lado direito e esquerdo, um músculo anormal. Por norma, as malformações têm de ser resolvidas com cirurgia." Como aconteceu com Afonso, "que tinha uma coisa complicada, um aperto na saída do coração para os pulmões e um buraco que separa as paredes do lado esquerdo e direito do coração".
Quando a notícia é comunicada, a função do médico passa, acima de tudo, por tranquilizar os pais. "O que se pretende é que a criança tenha uma vida normal, sem abdicar da vigilância e minimizando riscos." Porque, é como se diz, as coisas têm um tempo certo para acontecer. "Convém que a criança cresça para se iniciarem os tratamentos adequados, mas não tanto que lhe prejudique a vida." O expectável é que a partir dos quatro anos já se possa operar: "Nessa idade o risco é menor do que em bebé e ao mesmo tempo dá para a criança esquecer o sofrimento da operação". As situações, no entanto, variam. Como aconteceu com o filho de Ana Paula. Mais certo é que a criança, depois adulto, seja acompanhada toda a vida. "Porque numa consulta pode estar tudo bem e na consulta ou no ano seguintes, a notícia pode ser outra", conclui José Monterroso.
Adeus cansaço
Foi exatamente isso que aconteceu com a gestora Marta Figueiredo, hoje com 44 anos. Na infância foi-lhe detetado um sopro no coração. Até aos 18 foi seguida por um cardiologista pediátrico, sem nunca ter precisado de qualquer intervenção cirúrgica. Depois, mudou de médico. "O doutor Filipe sempre me disse, desde que me conheceu, que só daí a 20 anos é que precisava de ser operada." No ano passado, Marta tocou no assunto por brincadeira, numa consulta de acompanhamento. Era outubro. "O doutor já me conhece há 15 anos, olhe que já só faltam cinco para me operar." Nem de propósito, ele alertou-a para o que via no exame. "Houve uma dilatação da válvula." E nem pôde esperar que o Natal passasse. "Não me assustei, por causa do médico que tenho, que me tranquilizou. Só stressei quando entrei no bloco, mas já lá estava."
Na operação realizada por Adelino Leite Moreira, coordenador da Cirurgia Cardiotorácica do Hospital CUF Porto, descobriu-se que Marta tinha uma válvula quadricúspide - um caso raro, uma vez que o normal é ser tricúspide - e perceberam também que a paciente tinha um aneurisma na aorta ascendente. Ambos os problemas foram resolvidos. Mas em vez de substituir a válvula por uma prótese, a equipa médica optou por reparar a que existia. Um caso de sucesso. "O pós-operatório foi tranquilo, mas houve bastante dor", recorda Marta.
Após cinco meses, sente-se outra. "Todos os dias é um progresso. Só agora percebo a diferença do que era e do que sou. Antigamente cansava-me muito. Como sempre vivi com um problema, não conhecia outra realidade e achava normal ser como era." O que não a impediu de andar em montanhas-russas e de fazer exercício. "Às vezes pensava que mais depressa morria de velha do que de um problema do coração. Hoje estou grata. É muito importante ter um bom acompanhamento médico, que transmita confiança."
O médico Filipe Macedo reforça a ideia. "Um clínico com experiência para detetar o sopro cardíaco e orientá-lo na investigação do problema faz a diferença." Até porque, como refere, "em geral, ter uma válvula aórtica bicúspide, que é o que acontece a 1 a 2% da população, não significa que seja necessário ser operado ao coração".
Adelino Leite Moreira, que foi quem mexeu no coração de Marta, sublinha que "há algumas malformações que só têm impacto funcional na idade adulta". É o caso de Marta, cuja válvula com quatro folhetos funcionou razoavelmente nos primeiros tempos de vida, e que com a idade foi-se deteriorando. "O doutor Filipe Macedo, quando verificou que o caso preocupava, deu a indicação para fazer intervenção." A singularidade deste caso exigiu diferenciação técnica da equipa. Filipe Macedo: "Termos conseguido reparar a válvula da Marta é um benefício que está demonstrado. E com este procedimento também se evitou a epocuagulação oral [medicamentos que fazem com que o sangue fique mais fino]. É expectável que essa reparação permaneça estável e agora ela só tem de ser monitorizada. Como todos nós. Mesmo aqueles que nasceram com tudo direitinho".