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1. Lá está o homem que, logo pela manhã, toca clarinete ali em frente ao Intercontinental. Toca bem.
2. Lá andam, sem variar, as senhoras desta vida que estacionam ou vagueiam ali entre o Bonjardim e Fernandes Tomás, todas muito pouco novas, a jurar carinho ao "môr" que passa. Elas, cada dia menos novas, eles cada dia menos "môr". E lá as acho cada dia mais infinitamente humanas e quase bonitas.
3. Lá está o indivíduo com as suas rastas (ou lá o que aquilo é) à entrada do Bolhão, o filho ao lado, ele com o realejo foleiro, o rapazinho com o seu tédio.
4. Lá continua por resolver a questão grega: "por resolver" foi oficialmente declarado novo lema europeu. A crise financeira global, mais ou menos superada por outras bandas, com mais ou menos cicatrizes. Cá, na Europa, não. A crise gostou de nós, ama-nos, seduz-nos.
5. Lá continuamos por cá, sempre sérios e de gravata discreta, a querer aplicar à bruta as mezinhas da "austeridade" e do "rigor", espécie de restaurador Olex da nossa tristeza.
6. Lá continuamos a esquecer que o cabelo nunca deixou de ser grisalho ou branco por se lhe aplicar o restaurador Olex.
7. Lá descortinámos, com raro brilho intelectual, que 19 menos 1 é 18 e que vai tudo dar ao mesmo. Ainda vamos a presidente.
8. Lá continuamos (parvos que somos) a dizer que só por ser de esquerda é que Varoufakis (parvo que foi) disse que os outros governos europeus são terroristas.
9. Lá continuamos, simples de espírito, a dividir o mundo em dois: os bons e os maus. Nós somos bons.
10. Lá vamos temperando tudo isto com considerações severas ou juízos morais. Os gregos são uns desgraçados, as cabeleireiras deles até se reformam aos cinquenta e tais. Se contarem esta historieta, fica sempre bem um risinho cínico e sem mostrar os dentes.
11. Lá vem o FMI (esteja calado, não seja inconveniente!) pedir desculpa: é impossível aos gregos pagar aquele Evereste de euros.
12. Lá continuamos a pensar que pensamos que é melhor fingirmos que está tudo a correr bem.
13. Lá continua tudo doido.
14. Lá continuam os gregos (xô xô!, ide lá morrer para longe!) a quererem ser diferentes. Vão votar "oxi" ou vão votar "nai". Fosse eu, tudo somado, votava sim. Mas, não sendo o Siryza a minha praia, fosse eu grego, hoje estaria orgulhoso.
"Por resolver" foi oficialmente declarado novo lema europeu. A crise financeira global, mais ou menos superada por outras bandas, com mais ou menos cicatrizes. Cá, na Europa, não. A crise gostou de nós, ama-nos, seduz-nos.