Fechado o ano de 2014, os olhos estão postos num 2015 onde muito terá de mudar em Portugal. Nesta primeira crónica do ano, resisti à tentação da lista de desejos, até por uma questão de escassez de espaço, e optei por uma viagem fictícia, uma utopia de um 2015 ao gosto do comum dos portugueses.
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A ilusão que proponho aos nossos leitores é um tempo, algures entre o Natal e o fim de ano de 2015, em que um Portugal saído de umas eleições legislativas clarificadoras parece ter encontrado o caminho de um crescimento tranquilo, sem excessos nem fatalismos, compatível com os recursos limitados mas suficientes de que dispõe.
Três dias depois do Natal de 2015, o senhor Silva não cabe ainda em si de contente. Recebeu a maior prenda que jamais poderia imaginar. O irmão Manuel, mais novo e que por isso nunca conheceu os tempos de Salazar ou mesmo de Caetano, o único na família que teve a oportunidade de estudar na universidade e ainda por cima concluiu com excelência licenciatura e mestrado, regressou a Portugal. Veio para o Natal e para ficar, dois anos depois de ter zarpado para destino longínquo, com a sabedoria na mala, a lágrima no olho, a mulher abraçada (também ela letrada) e os dois filhos pequenos pelas mãos, tudo em troca de um salário que cá não existia. A família Silva chorou e riu de felicidade, por entre umas postas de bacalhau um pouco mais grossas do que em 2014. Afinal de contas, o Manuel e a mulher estavam de volta e com um emprego à altura. Que Natal!
Dias antes, a consoada tinha-se prolongado até tarde, com as crianças a dormitar no mar de papel de embrulho dos presentes e com os ditos ainda nas mãos que cediam ao sono. Na conversa, que a certa altura perdeu a excitação natalícia, os adultos entraram pela política. E era ver a satisfação, quase incrédula, por um orçamento de Estado aprovado por unanimidade, com a Oposição a validar um núcleo de grandes opções consensuais, na Justiça, na Saúde, na Educação e na reforma da Segurança Social. A certa altura, o Manuel, homem agora com vivência internacional, congratulou-se pelo facto dos ganhos orçamentais de 2015, decorrentes da descida das taxas de juro da dívida pública e também da queda a pique do preço do petróleo, não terem sido esbanjados em medidas eleitoralistas. "Isto vai, é só ter juízo e apostar nas pessoas, como fazem lá fora. Não se pode é dar folga aos trabalhadores só porque é dia de aniversário", dizia o ex-emigrante.
Os excessos do Natal causaram mossa intestinal. O mais novo do Manuel lá teve de ir ao hospital. Na Urgência do Amadora-Sintra foi-lhe atribuída uma prioridade intermédia. Está certo, não teve um acidente, mas também não é uma simples dor de cabeça. A verdade é que ao fim de 21 minutos de espera lá entrou, foi muito bem atendido e em cerca de uma hora foi possível passar pela farmácia e regressar a casa. "Assim vale a pena pagar impostos", dizia um Manuel surpreendido.
Já em casa, chega a hora do futebol na televisão pública. Não era nenhum dos três grandes, mas o certo é que o estádio estava muito bem composto. Ao contrário do Belenenses-Académica de 2014, em que só se via o betão da bancada e se ouviam até os gritos dos jogadores, este ano o jogo foi empolgante, com famílias nas bancadas, cânticos, emoção e até golos! "Parece um jogo lá de Inglaterra", asseverou o Manuel.
No intervalo do jogo, um breve bloco noticioso voltou à questão daquele presidente de câmara detido. Só que, desta vez, o jornalista fez questão de sublinhar que, devido ao segredo de Justiça, não seria possível dar voz a um dos agentes do processo. E, ainda mais surpreendente, foi noticiada a condenação de um desses jornalistas que desonram a classe, por sistemática violação da privacidade, ocorrida sempre que um familiar do político detido o visitava. O Manuel, de olhos pregados na televisão, sussurrava: "A ver se acaba o circo e começa a justiça".
Com o 2016 à porta, o senhor Silva, o irmão Manuel e toda a família sentiram aquilo que já haviam esquecido, um alento aconchegante, daquele que dá confiança para o futuro. Afinal, aquela ideia de estudar e depois contribuir para fazer crescer e melhorar o país, aquele que deixarão aos nossos filhos, era ainda possível de realizar. E, quem sabe, a vergonha que o Manuel sentira, revoltado, na sua condição de emigrante, poderia dar lugar ao orgulho. O orgulho de ser português.
PROFESSOR CATEDRÁTICO DA UNIVERSIDADE DO MINHO