Corpo do artigo
Um ano depois, a arrojada experiência política conduzida por António Costa confirmou o seu acerto e mostrou as suas virtudes. O Governo tem cumprido escrupulosamente o que prometeu na campanha eleitoral e há sinais que anunciam os resultados económicos esperados das políticas que propôs e dos cenários macroeconómicos que traçou. A nossa democracia está hoje mais sólida e a confiança dos eleitores no sistema político foi reforçada porque as opções governativas respeitaram a alternativa submetida à escolha dos eleitores, valorizando o sentido e a função do princípio de representação democrática. A vontade democrática expressa nas eleições de outubro de 2015 acabou por encontrar a fórmula governativa capaz de corporizar a mudança política reclamada nas urnas: um Governo minoritário do PS apoiado numa aliança parlamentar maioritária que congrega todos os partidos da Esquerda. É uma solução inédita na nossa história constitucional e uma oportunidade de valorização da democracia parlamentar que constitui um exemplo inspirador para a Europa e para o Mundo, confrontados com desafios dramáticos que ameaçam o Estado de direito, a soberania popular e as aquisições civilizacionais dos últimos 300 anos.
A destruição das conquistas cívicas e sociais arduamente conseguidas desde o fim da Segunda Guerra Mundial, acarretaram a inevitável erosão da base social das democracias europeias em benefício da vontade anónima dos "mercados financeiros", outra designação para o "capitalismo de casino" ascendente que se encobre sob a capa de uma ideologia rudimentar, global e totalitária. Uma doutrina construída para iludir a complexidade das organizações sociais e arrasar os valores em que se fundam. A apologia de um primitivo "Estado de natureza" idealizado - o "back to the basics" (Margareth Thatcher). A ênfase nas evidências empíricas e nas vulgaridades do senso comum - a escassez de recursos! - transformadas em norma de conduta indiscutível - "vivemos acima das nossas possibilidades" e "temos de pagar aos nossos credores" (Pedro Passos Coelho). Esta corrente ideológica influenciou profundamente a social-democracia e o socialismo democrático europeus, conduzindo ao afunilamento do campo de opções políticas que ditou, em tempos, a liquidação do velho partido socialista grego. E que favorece o crescimento assustador da extrema-direita xenófoba, principal beneficiária das derivas plebiscitárias que, mais recentemente, redundaram no Brexit e na derrota de Renzi no referendo constitucional italiano. Em Portugal, pelo contrário, o sistema político-partidário resistiu porque o Partido Socialista, a tempo, soube mudar de direção, construiu uma alternativa e garantiu a liderança da Esquerda. E os partidos da Direita resignaram-se por fim à derrota sofrida.
Do lado de lá do Atlântico, a destituição de Dilma Rousseff, no Brasil, e a inesperada vitória de Trump, nos EUA, são a expressão mais inquietante do desconcerto que assola o Mundo no ano que agora começa. Do lado de cá, um atentado terrorista em Berlim, outro em Istambul. Assim se despediu o ano velho, 15 anos depois de George W. Bush ter declarado "guerra ao terror". As redes terroristas multiplicaram-se entretanto e ampliaram o seu campo de ação. As mudanças climáticas, as catástrofes naturais, as guerras e conflitos armados empurram vagas cada vez mais numerosas de imigrantes que os países mais ricos e desenvolvidos se recusam a acolher. Os sentimentos de insegurança das populações continuaram a crescer, agravados pela crise económica, social e política que persiste, e os eleitores tornaram-se mais vulneráveis à demagogia e ao populismo da extrema-direita que fomenta o ódio e oferece à "plebe" os bodes expiatórios mais atraentes para exorcizar as suas irremediáveis frustrações: "os outros". Ciclópicos trabalhos aguardam António Guterres. Para o bem de nós todos, boa sorte!
* DEPUTADO E PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL