1. Olhando em frente, há que superar as insuficiências que persistem, das áreas da defesa e segurança ao reordenamento florestal, à habitação, à educação e aos cuidados de saúde. Os incêndios de 2017 expuseram tragicamente a negligência continuada de governos sucessivos, de diversas cores, que deixou crescer os eucaliptos e conduziu ao despovoamento do interior do país.
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Contudo, as medidas descentralizadoras que reforçam as competências e os recursos dos municípios não irão resultar sem a criação de um nível intermédio de administração regional nos territórios das atuais comissões de coordenação e desenvolvimento. As cinco CCDR deverão servir de matriz a um processo de transferência de poderes que nelas localize todas as competências de ordenação e planeamento cujo tratamento se mostre inadequado à escala municipal ou intermunicipal. Aí devem radicar os projetos de desenvolvimento e reordenamento florestal. Só a emergência de um nível intermédio de controlo democrático entre os municípios e o poder central pode oferecer um sentido real e concreto à responsabilidade cívica e à prestação de contas, à reabilitação da política e dos seus agentes, à qualificação urgente do regime democrático e da cidadania republicana. Sem ilusões quanto à complexidade do processo, é preciso desde já criar as condições administrativas e políticas que permitam o cumprimento desta promessa constitucional na próxima legislatura, após as eleições de outubro de 2019.
2. A multiplicação de escândalos perversamente explorados nos meios de Comunicação Social - ao sabor dos ódios ou simpatias dos comentadores de serviço - confere especial urgência à necessidade de defender a credibilidade dos eleitos e o exercício das funções públicas, combatendo as pulsões autoritárias que hoje ameaçam as democracias ocidentais. A organização e modo de funcionamento da própria Assembleia da República têm contribuído para veicular uma imagem distorcida do trabalho dos deputados, sobrevalorizando a presença no hemiciclo durante longas horas de debate de discutível utilidade, em detrimento do trabalho realizado nas comissões parlamentares, o contacto com os eleitores ou as audiências de cidadãos. Espera-se que da comissão eventual criada na Assembleia da República expressamente para aquele efeito, saiam medidas legislativas que satisfaçam os padrões de publicidade e transparência mais adequados às exigências atuais do trabalho legislativo. E neste sentido, é de importância primordial a imposição da dedicação exclusiva dos deputados às funções parlamentares para que foram eleitos. O exercício de outras funções deve ser considerado incompatível com a natureza do mandato popular que se deve reger segundo um regime semelhante ao dos restantes órgãos de soberania.
3. O final do ano foi marcado por uma impressionante vaga de greves e manifestações que exibiram um dinamismo social e um entusiasmo cívico que assinala a definitiva rotura com a desolada resignação dramaticamente promovida pelas políticas de austeridade do velho Governo do PSD/CDS. Claro que essas lutas provocaram os habituais transtornos e proporcionaram abusos e oportunismos dispensáveis. Foi o caso da greve absurda dos juízes, do prolongado impasse na greve dos estivadores e do mistério da espetacular recolha de fundos para a greve dos enfermeiros, à sombra do anonimato. Continuamos a sofrer as consequências da degradação da generalidade dos serviços públicos deliberadamente executada pelo Governo anterior. Mas, enfim, regressou a esperança e o ânimo para mudar o Mundo. Como cantava Sérgio Godinho, "só quer a vida cheia quem teve a vida parada (...) a sede de uma espera só se estanca na torrente".
Deputado e professor de Direito Constitucional