Corpo do artigo
Causadora de zero vítimas na classe operária, mais do que sobre a cumplicidade do martelo que (vide, folhetim em permanência no "Luta Popular") se foi (ou foi-se...) entre Arnaldo e Garcia, é sobre o martelo de Paris que faço título. Durante a tarde de ontem, um homem com um martelo atacou um polícia perto da Catedral de Notre-Dame, sendo depois atingido e transportado para uma unidade hospitalar. Este episódio dramático com um homem-armado-com-um-martelo-até-aos-dentes causou zero vítimas e facilitou que os canais de notícias transmitissem horas e horas estéreis de directo que só podem ter sido dirigidos à propaganda do medo e do terrorismo.
Há quem sustente que existe remédio simples e cura imediata: é sempre possível accionar o botão do comando e desligar. Mas esta tese peregrina de que um canal informativo pode admitir que um espectador se desinforme pela qualidade da notícia ao ponto de votar os factos ao abandono é uma péssima adenda à pós-verdade. Quem alimenta uma notícia real em versão espectáculo permite ao espectador que procure a sua leitura da realidade na versão mentirosa dos factos. Tantas vezes nas notícias, vemos hoje como se apanha o espectador pelos colarinhos, batendo-o pelo cansaço.
Não diria que seja uma alternativa. A esmagadora maioria dos canais de informação televisivos desenvolveu duas formas de entretenimento massivo quando não se passa nada ou a notícia pare um rato: uma, em diferido, pela repetição exaustiva das mesmas imagens em "loop", preferencialmente em janelinhas estanques mas simultâneas, encaixadas em títulos gigantescos que soletram em diferentes composições de desacerto a palavra ca-tás-tro-fe; a outra, em directo, pela permanência esgotante de um só plano geral quase estático, normalmente distante e difuso, elemento indicador de que havendo uma aparência de notícia quando nada se passa de visível, algo de catastrófico estará prestes a suceder.
A dimensão da cumplicidade no acto da notícia confunde-se com um auto de notícia de um crime. Se para ser cúmplice é necessária conivência e compreensão profunda entre as partes, preenchem-se todos os requisitos do delito nos directos televisivos dos canais de informação onde, quase todos os dias, vão desfilando sucessivos ataques à legítima defesa do telespectador. Ao ponto de equacionarmos o peso e poder da Comunicação Social no próprio cenário do crime, reflectindo sobre a dimensão da sua responsabilidade cúmplice. O terrorismo nas notícias existe sobretudo quando não há notícias para dar.
(O autor escreve segundo a antiga ortografia.)
* MÚSICO E ADVOGADO